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CARIDADE DE HOJE

2 de Maio de 2019 | Helena Ramos Fernandes
CARIDADE DE HOJE
Geral

 

Na minha última crónica falei aqui da importância (leia-se urgência) em todos ajudarmos Moçambique na medida das nossas possibilidades. Lembrei aqui a riqueza que esse país já nos deu e continua a dar, sobretudo ao nível cultural.

Entretanto ardeu a Catedral de Notre Dame, em França. Foi com grande consternação que assisti às imagens do fogo a consumir um património de um valor incalculável. Mas o que veio a seguir deixou-me ainda mais chocada. No imediato apareceram as maiores empresas, os maiores grupos, os maiores milionários dispostos a doar milhões para reconstruir aquele edifício. Isto numa altura em que continuam a existir milhares e milhares de moçambicanos a desesperar por uma casa. Por alimentos.

Fiquei sem palavras. Ainda para mais agora em que os donativos já superam os mil milhões de euros. São números que dão que pensar e não nos mostram, de todo, uma caridade desinteressada dos gigantes da economia mundial. Neste mundo, como certamente todos sabem, ninguém dá nada a ninguém. E deste gesto “caridoso” terá obrigatoriamente de haver um retorno. Mas que retorno?

Sem prender-me em grandes explicações, todas as empresas podem obter vantagens fiscais através do mecenato. Mas não é só isto, porque se fosse então as ajudas a Moçambique também surgiriam com enorme fluidez. Há também o lado da fama, do mediatismo, dos maiores beneméritos que irão ficar para sempre como “heróis” que ajudaram a reconstruir esta Catedral.

É triste. Não há outro adjectivo.

Os donativos já serão tantos que até me palpita que os responsáveis pela Catedral irão dar-se ao luxo de escolher quais as maquias que irão aceitar. E quais as que irão rejeitar, obviamente. Ajudar Notre Dame deixou desde logo de ser um gesto caridoso para passar a ser uma corrida à fama perpetuada. Uma corrida ao “obrigado” vindo do Estado francês. Um verdadeiro circo de exibição de músculos onde passam pelo palco as maiores empresas do planeta.

Escreveu S. Paulo aos Coríntios que “a caridade é paciente, a caridade é benigna; não é invejosa, não é altiva nem orgulhosa; não é inconveniente, não procura o próprio interesse; não se irrita, não guarda ressentimento; não se alegra com a injustiça, mas alegra-se com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. Assim, partindo desta definição que nos é dada pela própria Bíblia, o que está a acontecer em Notre Dame é tudo menos caridade.

E Moçambique? Continua lá. A viver de tostões que nunca chegam a milhões. A viver das palavras de S. Paulo tão difíceis de concretizar para um mundo que vive obcecado pela projecção mediática. Para um mundo onde o ter é sempre mais importante que o ser.

 

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