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O Magnânino

1 de Dezembro de 2015 | Alfredo Maioto
O Magnânino
Opinião

Quero falar mas as palavras ficam estranguladas na garganta. Há um nó invisível que me aperta o peito e me tira o ar. Mas eu quero, eu preciso, preciso por necessidade física e mental, de soltar a gratidão que me assola a alma. Mas como, se as palavras, impedidas pela comoção, me deixam os olhos vidrados?

Há dias que me persegue uma sensação de leveza nunca sentida. Afinal aguardei 42 anos por este momento! Quanta emoção! Fui ver a conta bancária e lá estava o prémio: 100 euros! Meu Deus, 100 euros! Quase endoideço nesta mistura macabra entre o rir e o chorar! 100 euros que a Pátria me dá por ter estado na guerra durante 28 meses, pelas noites dormidas no chão, por ver camaradas morrer, sofrer emboscadas, passar por cima de minas mas rebentadas por machimbombos com consequências terríveis! Vou explodir de tanta ventura!

Mas, tenho de reconhecer, se recebo tamanha fortuna apenas a um homem o devo, quando, anos atrás, num assomo de generosidade extrema, ele decidiu presentear todos os ex-combatentes com 150 euros anuais! Anuais, meu Deus!, o equivalente a 12 euros e 50 cêntimos por mês. Só que esta verba, devido aos tempos macabros em que nos afundámos, ficou reduzida misteriosamente e 50 euros eclipsaram-se para ajuda na compra de um Mercedes topo de gama…

Não consigo esquecer o instante sagrado em que, ao ouvir na televisão que iria usufruir dos ditos 150 euros, não aguentei as lágrimas e chorei, qual carpideira, atingido, qual raio, por tamanha generosidade. Na conferência de imprensa realizada para divulgar tão rara magnificência, o repórter, atrevidamente, argumentou que o valor atribuído era insignificante (anual, Sr. ministro?), ao que o autor da ideia tão incomensurável, então ministro da Defesa, escandalizado com tanta desfaçatez logo contrapôs com duas rugas na testa:

– Mas são 2 contos e quinhentos por mês!

Homem de visão, político de irrevogável talento, esse ministro da Defesa, ao aplicar como um Título do Tesouro nos 800 mil ex-combatentes, sabia que um agregado familiar era tradicionalmente composto por 3 pessoas. Ora, 3 vezes 800 mil dá um resultado astronómico para guindá-lo ao sucesso na sua vida política no futuro. A praga dos votos! Que cabeça tão sábia! Irrevogavelmente brilhante!

Mas o que ninguém sabe deste homem é que, dotado dum poder visionário como Júlio Verne, desde que leu, criança precoce, as “Vinte mil léguas submarinas”, de imediato ficou apaixonado pelo mar. O capitão Nemo, ao enfrentar monstros marinhos no submarino “Nautilus”, encheu-lhe a cabeça com aventuras arrepiantes. Ele, como eu, devorou todas as obras de Júlio Verne, e secretamente tinha um sonho bem guardado: ser um dia comandante de um submarino qualquer. Nem que o submarino deslizasse num ribeiro! E foi assim que anos mais tarde, quando o destino (e o talento) o promoveu a ministro do Mar, sem perder um segundo sequer logo se apressou a concretizar o sonho comprando não um, mas dois submarinos! O sonho estava revogado! E o país mergulhou com ele em louvores e espantos! A partir desse instante a Pátria já podia combater todos os piratas com pernas de pau que sacaneavam os nossos mares! O bom do Peter Pan!

Mas de repente uma angústia bateu-me no peito: que fazer com 100 euros? Não tenho tempo para gastá-los! Meu primo Tó, ele também um ex-combatente, disse que, se eu queria mesmo, mesmo, estar grato a esse homem grandioso, então o melhor seria comprar também eu um submarino. Ficaríamos assim irmanados na água em vez do sangue! Na semana passada, na tasca do Ambrósio, e servindo-se dum guardanapo de papel, logo ali fez as contas: lá para os 150 anos já teria pago pelo menos o periscópio! Fiquei a matutar na ideia, e na verdade até acho que seria uma forma linda de ficar ligado ao homem que acaba de colocar na minha conta os 100 euros mais ricos e inesquecíveis da minha vida.

Sem dúvida alguma que estes 100 euros pagam sobejamente tudo o que sofri, as minas rebentadas, as emboscadas sofridas, o dormir no mato apenas com o poncho húmido para me agasalhar, o frio e a sede enfrentados, ver camaradas morrer, tudo, tudo. Desculpem, mas uma lágrima escorreu para o teclado do computador. Sem querer, devido à vista lacrimejante, escrevi “vá gozar com o carago” em vez de escrever “sinto-me agradecido”! Simples troca de letras…

Orgulho-me da Pátria que me pariu para a guerra, o que de melhor me ofereceu até hoje. Mas a este homem que mandou colocar na minha conta 100 euros, e que eu deixo cosido à História com o cognome de O Magnânimo, a irrevogabilidade de toda a minha incomensurável gratidão!

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