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26 de Fevereiro de 2020 | José Augusto Pacheco
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Sento-me à mesa do restaurante semideserto de um hotel junto ao aeroporto internacional de Luanda e digo “Bom dia”, recebendo de volta “Boa tarde” do solícito empregado. Pois é, já horas antes estivera a tomar o pequeno-almoço, depois de ter chegado a Angola pela madrugada dentro. Do Porto a Luanda é um instante, num voo direto das linhas aéreas angolanas, sendo a chegada (por estes tempos de coronavírus, rebatizado Covi19) retardada pelo controlo da temperatura de cada passageiro, num ritual apenas simbólico

À hora marcada, o Senhor Pedro, um homem afável e calmo, dentro dos seus trinta e poucos anos, está à porta do hotel e conduz-me, pelas ruas de um calmo domingo, até às partidas domésticas (é interessantes a distinção entre estas partidas e as internacionais, sem tendência para o uso da expressão partidas locais; será que as cidades ou lugares de diferentes espaços regionais são as casas de um país?).

Cheguei. Entro rapidamente, faço o check-in, despacho a mala e tenho duas horas para trabalhar no computador, na acolhedora sala do 1º andar, na companhia de um café e de uma garrafa de água, que paguei em euros e recebi o troco em kwanzas, numa operação que não sei dizer quanto me custou, porque a contabilidade nestes espaços híbridos é mesmo quase aleatória.

E já estou no aeroporto de Catumbela, voando matinalmente de Benguela para Luanda, depois de ter passado três noites nesta cidade muito simpática do sul de Angola, numa rotina diária de hotel-universidade-hotel, com algum tempo, no último dia, para revisitar a Baía Azul, inundada de simpatia nos rostos de amigos que se reabraçam.

No dia a dia da cidade de Benguela, e nas curtas deslocações realizadas, não foi possível sentir o pulso das gentes que percorrem as ruas poeirentas, nem para observar com mais pormenor a paciência de quem conduz em ruas sem sinalização. Mas deu bem para gravar na minha memória, de forma mais indelével do que qualquer registo fotográfico, o rosto de uma criança – desolada, vestida de tristíssima tristeza e calçada pela nudez dos seus pés –, de olhar ausente, junto à porta do hotel, dormindo ainda no dealbar de uma manhã que será igual a tantas outras, de mão estendida à procura de um sorriso que seja convertível numa moedita.

De volta ao aeroporto, agora o internacional de Luanda, no voo de regresso para Lisboa, depois para o do Porto, após dois intensos dias numa cidade que tem dentro de si os aspetos sociais mais contraditórios – e qual é a cidade que não os tem?

O primeiro dia foi passado numa das novas centralidades de Luanda (Kilamba), com um planeamento urbanístico bem pensado e com instituições públicas de ensino superior de elevada qualidade, num diálogo com colegas realizado na mesma língua, que faz de angolanos e portugueses verdadeiros irmãos de um presente, apesar de um passado marcado pelas lógicas dos impérios que a História, a uma escala global, foi tecendo, como aranha que pacientemente urde a sua teia.

O segundo dia, também passado em reuniões, a um ritmo vertiginoso, pois eram muitas as agendas, foi passado na cidade administrativa, num quarteirão de uma só cor e de edifícios governamentais, com uma breve deslocação a Talatona. Foram dois dias de ar condicionado e agora, em pleno aeroporto, há um cheiro a fritos, deveras incómodo, a que a urgência de escrever esta crónica me impele a aceitá-lo, com a naturalidade de quem está prestes a partir para o país que é meu, porque o que efemeramente era nosso nunca fez sentido, senão o de ter sido símbolo de uma ditadura que nunca lidou satisfatoriamente com o fim do império, nascido nos mares dantes navegados e arroteado pelas mãos ensanguentadas de uma identidade de posse, que durou  longos séculos, desde Ceuta, em 1415, até Macau, em 1999.

 

 

 

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