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ROMARIGÃES. AS MENINAS DA QUINTA DA BOAVISTA

22 de Outubro de 2024 | José Luis Freitas
ROMARIGÃES. AS MENINAS DA QUINTA DA BOAVISTA
Destaque

Antigamente, em Romarigães as casas transbordavam de vida, hoje de silêncios e espaços vazios. Lembro agora aqui uma casa cheia de fé, bondade e vida no século passado.

Falo da Quinta da Boavista, lar das dez irmãs que o tempo não esqueceu. Carminda, Áurea, Isalina, Madalena, Beatriz, Laurinda, Rosa, Eduartina, Ricardina, Maria, conhecidas como “as meninas da Boavista” (a acrescentar ainda dois irmãos: o António e o Aníbal), ainda que a passagem dos anos tivesse deixado marcas nas suas faces e histórias nos seus olhares.

Ao longo de décadas, aquelas irmãs marcaram a vida da freguesia com a sua presença constante e a sua devoção inabalável. Desde os primeiros anos do século passado até ao seu último suspiro, cada uma delas foi uma figura querida e respeitada, símbolo de bondade e fé. Cresceram num tempo em que as tradições eram o fio que unia as pessoas, e nelas encontraram um sentido de missão que as acompanhou até ao fim. Romarigães era o seu mundo, e elas, o esteio espiritual de muitos que cá viviam.

A Quinta da Boavista, com a sua simplicidade e  fachada austera, tornou-se um verdadeiro santuário da aldeia. Foi ali que, ao longo dos anos, se guardou o mais valioso espólio da igreja paroquial: paramentos bordados com detalhes meticulosos, testemunhas silenciosas de missas solenes e procissões que já ninguém mais recorda; cálices de prata, com brilhos de devoção antiga; santos de madeira envelhecida, com os olhos fixos num céu que só as meninas da Boavista pareciam ver. Cruzavam-se as cruzes paroquiais de tempos remotos, cujos dourados perderam o fulgor, mas mantinham a aura do que é sagrado.

As irmãs tinham por missão cuidar destes tesouros, e essa responsabilidade era-lhes tão natural como as preces que recitavam. Quando a aldeia se preparava para as festas, era nas suas mãos que os paramentos se renovavam, com a delicadeza de quem compreende que cada fio, cada adorno, tem uma história. Foram mordomas, zeladoras de altar, catequistas de gerações inteiras. Sob a sua tutela, o altar da igreja estava sempre florido e impecável, reflectindo a sua devoção e carinho.

Para além de guardiãs do sagrado, eram também guardiãs das gentes de Romarigães. Naqueles tempos em que as vidas eram mais duras e as alegrias mais simples, as portas da Quinta da Boavista estavam sempre abertas. Ali, as irmãs recebiam quem precisasse de uma palavra de conforto ou de um prato quente nos dias de Inverno. No seu lar, misturavam-se as orações dos terços, as alegres fiadas e as histórias das colheitas, as memórias de procissões antigas e os conselhos sobre os bons dias para semear e colher.

Quando os invernos eram rigorosos, era na casa das meninas da Boavista que os paramentos mais frágeis da igreja encontravam abrigo. E nos dias de festa, eram elas que se empenhavam em preparar os altares, assegurando que tudo estivesse à altura do que Romarigães merecia. Os anos passaram, as procissões deixaram de ser tão imponentes, mas elas mantiveram essa chama viva, até que a última delas se despediu.

Com o tempo, todas as irmãs da Quinta da Boavista partiram. Os seus nomes ficaram na memória dos mais velhos e nos murmúrios de saudade que os ventos de Romarigães carregam pelos lugares. A casa, hoje em silêncio e pertença de outrem, guarda ainda o eco das suas orações e o aroma do caldo quente que tantas vezes partilharam.

A Quinta da Boavista era mais que uma casa, era o coração de Romarigães. E as dez irmãs, essas guardiãs de uma fé simples e profunda, eram o seu pulso. As suas vidas, de entrega e serviço, eram como as velas que ardiam no altar: pequenas, silenciosas, mas capazes de iluminar a escuridão. E assim, na sombra das montanhas e à luz dos candelabros, a aldeia seguia o seu curso, certa de que, enquanto as meninas da Boavista ali estivessem, o sagrado estaria bem guardado

Romarigães mudou, mas a aldeia não esquece. Na memória colectiva, as meninas da Boavista são lembradas como as zeladoras de uma era em que o sagrado era tratado com a mesma ternura com que se trata um filho. E assim, o seu legado de fé, bondade e cuidado perdura, estendendo-se pelas décadas como o murmúrio de um rosário.

 

 

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