Recordo com uma nitidez estonteante que a Páscoa, naquele ano de 1971, foi precisamente no dia 11, uma data banalíssima para muita gente menos para mim. Porque no dia seguinte, a segunda-feira mais marcante na minha vida, teria de me separar de minha família e partir na semana seguinte para a guerra em Moçambique. Só que eu, querendo evitar despedidas duras e lágrimas amargas, nada tinha dito em casa. E para quê? E Abril corria muito lento e sofredor…
Naquele domingo de Páscoa, depois da passagem do Compasso em casa e do beijo da Cruz (se não o fizesse cometia um sacrilégio!), corri ao encontro dos meus amigos para bebermos uns copos juntos. Para mim era uma despedida, para eles apenas momentos de divertimento. A despesa seria minha, disse eu logo à entrada. Aplaudiram, assobiaram, e nem quiseram saber a razão. Também não revelei, o segredo continuava só comigo.
Nesse dia, como é natural, a aldeia vivia agitada entre os foguetes e o toque da sineta a apregoar a chegada do padre e dos mordomos. À frente, qual arauto a apregoar a boa nova, vinha sempre o surdo-mudo do lugar e que todos os anos se encarregava de ser ele o responsável dessa missão tão nobre. Lá em baixo as águas do rio Tâmega, transparentes, deslizavam serenamente misturando- se com as do rio Douro escuro e frio, ambos alheios ao meu drama. E, entre risadas e canecas de vinho verde tinto, pois claro, com bom presunto e iscas de bacalhau da tia Laurinda à mistura, a caneca de porcelana de litro vadiando de mão em mão como ordenava a moda, na tasquinha do Ribeiro eu ri para esquecer o dia 21 que se aproximava a passos de gigante. Porque aquele Abril tinha a cor e o cheiro do diabo!
Acho que, na ânsia em espairecer, me excedi um pouco na conta, e por isso a mente ficou mais solta e as palavras mais macias. O que eu tanto precisava para assim aguentar a dura separação no dia seguinte.
Todavia, quando cheguei a casa encontrei um ambiente pesado e triste, completamente diferente de quando saira. Estranhei, e com um olhar impercetível perguntei à minha irmã o porquê. Sem nada dizer ela subiu para o quarto e eu acompanhei- a, e então fiquei a saber a razão da tristeza a pairar na sala: o meu amigo Heitor, com a especialidade de cozinheiro, baixote e pesado, desempenado no andar e na língua tagareleira, foi passar a Páscoa a Oliveira, a freguesia vizinha, e sem dificuldade conseguiu chegar a minha casa. Ele estava integrado no meu Batalhão e partia no mesmo barco que eu, o Niassa, e, vou pensar que inadvertidamente, na sua língua comprida e inocente, acabou por revelar que no dia 21 embarcávamos para Moçambique! Ao descer do quarto minha mãe olhou-me com uns olhos doces e lágrimas bailantes em seus olhos, e abraçou-me em silêncio e com força, essa mesma força que as mães possuem em momentos especiais. Gracejei, ri dizendo para não me partir as costelas, brinquei como pude, e fui adiantando que não era bem assim, ainda nem sabíamos se partíamos ou não, e que o meu amigo, com a sua tagarelice, apenas queria exibir-se. Tanta coisa dita só para não ver minha mãe sofrer! Antes foi meu irmão que esteve em Angola, agora seria a minha vez. Mas não era essa a sina de todas as mães desse tempo?
Depois a separação. A expressão “a última vez” deixa-me sempre sem fôlego, arrasa-me mesmo, corta-me o corpo e mata-me a alma! Ainda hoje é assim, sinal de que não amadureci suficientemente…
Dentro do seu Nsu Prinz cinza, com uns bons 20 anos mas bem estimado, e capaz de nos levar a contento até à cidade, estava o meu primo Alberto que estudava arquitectura no Porto, e que pacientemente esperava por mim.
– Tenho de ir, o táxi não espera mais…
– brinquei. E sorri. Mas a alma torcia-se com dores.
Abracei minhas irmãs, depois meu pai. Meu pai, sempre enorme na sua simplicidade, deu-me um beijo e murmurou um trémulo “vai com Deus “ e logo a seguir afastou-se uns metros virado para o rio. Por fim abracei minha mãe. Tentando sempre sorrir balbuciei um “estou cá no próximo mês” e dei-lhe o último beijo. E sem mais perda de tempo entrei no carro. No aceno final através da janela aberta do carro, avistei lágrimas sustidas com esforço nos olhos de todos mas sobretudo nos de minha mãe. E imaginei se soltariam mal eu me afastasse… Tinha a certeza que sim! Mulher-força, como só as mães são!
A viagem de regresso ao Porto foi penosa e excessivamente avassaladora. Meu coração queria saltar do peito. Para desanuviar o ambiente um pouco meu primo pôs a rolar o “cartucho”. Nelson Ned cantava: “E tudo passa… e tudo passará…”. Chateado com a ironia da letra e com tudo o que acabava de viver, elevei o som do rádio Grundig ao máximo no vão intento de afugentar a tristeza que me tolhia todo. Alberto deu-me uma palmada vigorosa no ombro, atirou um forte “vá lá, pá, tem fé que vais voltar” e jurou por São Tomé, patrono dos arquitectos, que me iria arranjar uma madrinha de guerra de gritos! Era só esperar para ver! Depois começou a cantar com o Nelson Ned entusiasticamente, ora batendo as mãos no volante, ora no vidro, ou então na minha perna. Tudo para me animar, bem sabia que sim. Chegados ao Porto pedi para me deixar no Infante, aí eu apanhava o eléctrico para a Foz do Douro, onde vivia. Meu primo saiu do carro, olhou para mim majestoso:
– Não sou gajo de muitas rezas, já sabes, mas prometo que quando vieres vou contigo a Fátima agradecer a Nossa Senhora! Por isso trata de vir quanto antes!
Abraçou-me com força, enquanto murmurava em meu ouvido “vai com Deus, querido primo” e entrou no carro arrancando de seguida sem um aceno sequer. Mas apesar da pressa ainda consegui ver a mão a passar repetidas vezes pelos olhos…
Ao ficar só, de repente, assim tão de repente, num clic diabólico, nesse preciso instante o peso do mundo caiu em cima dos meus ombros!