Ao ver neste jornal, na publicação do passado 20 de Outubro, a fotografia de uma equipa de futebol do Formariz Atlético Clube, dos anos sessenta, vieram-me ao pensamento algumas lembranças dos desafios a que assisti, nesses tempos. É que, até 1958, fui um assíduo espectador dos jogos deste clube, quer em casa, no Campo do Côto, quer acompanhando a equipa a várias partes do distrito. E qual o motivo dessa participação? Simplesmente porque, em 1954, o jogador Manuel Rodrigues, natural da vila, conhecido por Manuel dos Velhos e não das Velhas, como vem assinalado na legenda da fotografia, casou com uma irmã do meu pai e, por uma questão de afinidade, alguns membros da família começaram a assistir aos jogos. Eu, rapazito pequeno, acompanhava sempre o meu pai, ao campo do Atlético e, algumas vezes, nas deslocações que o clube fazia ao campo do adversário.
Dos treze jogadores que estão na foto, só não conheço dois e dos restantes onze, oito já faleceram. O Manuel dos Velhos foi o primeiro a morrer, faz vinte e sete anos em Janeiro. Mas devo dizer que esta equipa já era algo diferente da que conheci anos antes, havendo nela novas caras. Da anterior equipa faziam parte três irmãos Martins, três irmãos Latoeiros, o Rogério, o Narciso Vieira, o Adão, o Júlio da Amabélia, entre outros. Nesse tempo, jogava-se por amor à camisola e à terra e não se auferiam quaisquer proventos. O Nelo dos Velhos que exercia a profissão de padeiro na Silva, em Valença, tinha trabalhado na noite anterior ao jogo e de manhã vinha para Coura, de bicicleta, jogar. No final do jogo, regressava a sua casa, em Ferreira, levando o equipamento para ser lavado e, à noite, partia de novo para o trabalho na sua bicicleta de corrida! A isto é que se pode chamar amor à camisola, outros tempos, outra filosofia de vida!
No Campo do Côto não havia instalações e como não tinha balneários, os jogadores equipavam-se cá em baixo, perto do Livramento, nos fundos da mercearia do Dario Martins, que também jogava e era o motor de toda a organização do clube. Dos jogos em casa, lembro-me de dois resultados: uma vitória por 3-1, frente ao Primavera de Fânzeres, de Gondomar, e uma derrota de 1-4, frente ao Campos, no dia treze de Maio de 1956. Na noite desse dia, nasceu um dos meus irmãos! Por causa desse jogo, faltei às aulas no dia seguinte, visto ter apanhado uma forte insolação que me provocou dores de cabeça e febre.
Dos jogos a que assisti, recordo algumas situações engraçadas que, hoje, seriam ridículas. Lembro-me que alguns jogadores usavam um lenço atado na testa para enxugar o suor, segundo diziam. Outros usavam também um lenço preso ao calção, pela parte de fora, tal como usam as raparigas dos ranchos folclóricos e que servia para se limparem. Havia ainda aqueles que, no tempo quente, levavam uma laranja metida no elástico do calção para sorverem o seu sumo durante o jogo. Certa vez, um sujeito de Ferreira, que se costumava embriagar, provocou um jogador do Atlético durante um jogo, dizendo que este não jogava nada e que era um burro, na altura em que este estava com uma laranja na mão. Ao sentir-se ofendido, não esteve com meias-medidas, arremessou o fruto à cara do homem com toda a raiva, e este ficou com o rosto “alaranjado”, provocando um riso geral. A ira foi tal que, não se contentando com o que acabara de fazer, o jogador saiu do campo, com o jogo a decorrer, e unhou o homem. Valeu-lhe o socorro dos amigos que acalmaram o atleta. E não podia deixar de referir a boina que o Nelo dos Velhos e o Tone da Laida, o guarda-redes, usavam sempre durante os jogos. Noutra ocasião, no jogo com o Primavera de Fânzeres, o árbitro que apitou o jogo fazia parte da sua comitiva e ao ver a equipa da sua terra a perder, a partir de certa altura, começou a prejudicar, descaradamente, o Atlético. Foi então que um jogador deste clube se dirigiu ao árbitro, agarrou-o pela cara e suspendeu-o no ar, dizendo-lhe de forma agressiva: “Você é cego?” E mais não fez porque os colegas entraram em acção. Nesse tempo, a bola com que se jogava dizia-se que era uma “bola de capão” e só havia uma em cada jogo! Sempre que ela saía do campo e ia para a bouça, ou pelo monte abaixo, o jogo parava, esperando que a rapaziada chegasse com ela, mas, às vezes, antes de a entregarem, eles resolviam dar uns toques!… Outra situação que relembro era a intervenção da Guarda. Como não havia separadores, entre os espectadores e o rectângulo, sempre que estes, entusiasmados com o jogo, pisavam o risco da marcação, sujeitavam-se, no mínimo, a serem empurrados com a coronha da espingarda. Quando havia zaragatas, era uma fartura… todos batiam e todos levavam pancada.
Certo domingo, aí por volta de 1955, o Atlético foi jogar a Lanheses, uma freguesia de Viana do Castelo, estávamos no final da Primavera e o dia estava quente. Duas camionetas da Courense “focinhudas” e com escadas atrás, partiram de Formariz com a equipa e os adeptos, onde eu e alguns membros da minha família nos incluíamos. Ir a Lanheses tinha para a minha família um interesse especial, visto um dos meus bisavôs ter partido desta terra, em 1881 em direcção a Coura, a fim de trabalhar de canteiro nas obras da futura Estrada Real nº 24, que ligava Coura a S. Pedro da Torre. E cá casou e constituiu uma grande família.
Como é costume com a gente da nossa terra, durante a viagem, fez-se uma grande cantarolada e lá vamos nós, pela estrada das Pedras Finas, ainda com o piso em macadame e cheia de buracos e muitas curvas, a passo de caracol… Durante a viagem, parou-se em tudo o que era localidade para botar umas malguinhas, ou tomar café, não fôssemos nós de Coura.
Quando chegámos, já estava quase na hora de iniciar o jogo. A equipa do Lanheses já tinha jogado em Formariz e tinha perdido, não sei por quantos, por isso, agora havia que contar com uma desforra. O jogo teve início à hora marcada, mas havia uma grande diferença entre as duas equipas. O Atlético, para além do bairrismo dos seus jogadores, só tinha, como táctica de jogo, chutar a bola para a frente e fé em Deus. O Lanheses, que usava calção preto e camisola com triângulos pretos e amarelos, tinha um jogo mais técnico, o passe e a desmarcação faziam parte do seu tipo de jogo e os golos não tardaram em surgir. Apareceu o primeiro, apareceu o segundo, o terceiro e chegaram aos sete! Era uma vergonha, pensava eu, uma criança de oito/nove anos. E foi assim que ficou o resultado, perdemos por 7-0. Restava-nos a consolação de termos ganho em Coura, umas semanas antes. Alguém do Atlético ainda insinuou que na equipa do Lanheses estavam integrados alguns jogadores do Vianense e era bem provável, visto a equipa ser bastante diferente da que jogou em Coura. O pior de tudo era os comentários jocosos dos adeptos adversários, que diziam: “Na terra deles, a bola deve ser de chumbo…” Outros diziam: “Eles devem estar habituados a jogar com uma bola quadrada…” E o gozo continuava numa infinidade de provocações que faziam perder a paciência a um santo, mas que tivemos de suportar, de bom grado. Era a lei do mais forte. Se dissessem isso em Coura, de certeza que teriam de contar… (Continua)