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4 de Dezembro de 2019 | José Augusto Pacheco
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Opinião

E a terra faz-se água e de entre a água brotam ilhas na floresta amazónica. Esta poderia ser uma frase para iniciar um conto ou uma lenda sobre os espaços da Amazónia, habitada por povos longínquos, cuja miscigenação se verificou ao longo de séculos numa relação de vários continentes. Assim, negros, índios e brancos constituíram um caldeirão de povos que nas águas de muitas terras têm procurado viver pacificamente, mesmo que a violência alimente uma memória bastante terrível.

E desta terra de refúgios encantadores, o sustento das pessoas, que criaram os lugares, a que deram, a partir do século XVIII, nomes de vilas e cidades portuguesas, foi encontrado na pesca, nos ovos das tartarugas, nas especiarias e nas drogas do sertão, que encontrei no domingo passado à venda na feirinha semanal que se realiza na Praça da República, porque dos reis e imperadores restam apenas documentos e pouco mais. E desse modo, conhecendo o território como se conheciam a si próprios, sem jugo de escravidão, os índios, cujo trabalho era considerado o ouro vermelho, foram trabalhando como remeiros, guias de exploração de recursos, de navegadores de rios que são mares sem ondulação, pescadores, carregadores e de mais outras coisas, traduzidas por um  etc., até que se cansaram e do seu protesto, de fugitivos para o labirinto da floresta e das ilhas que parecem não caber num mapa, chegaram homens e mulheres escravizados do continente negro, num vaivém de muitas embarcações, com passagem obrigatória pela Cidade Velha, em Cabo Verde.

E de uma enorme catástrofe humana forjou-se um território multifacetado na sua identidade humana, com regras assimiladas, caso da língua, porque aos súbditos do rei, em todo o território de aquém e além-mar, era exigido que falassem respeitosamente a língua portuguesa, que se convertessem ao cristianismo e que respeitassem as regras administrativamente impostas pela força da espada, mas tal imposição não passava de um tiro de pólvora seca, e foi então que a sua teimosia foi conquistada pela atribuição de prémios, sobretudo de alfaias, de redes e de outras pequenas coisas, que chegaram inclusive a ser dados aos brancos que casassem com índias, morenas e belas sempre na sua tez pintada de sol tropical.

E desse turbilhão de acontecimentos nasceram lendas e fabricaram-se tradições que são hoje uma fonte límpida de memórias culturalmente ricas e diversas, num hino à imaginação e num convívio infindável, em que a natureza é protegida num longo abraço maternal. E dessas vivências entrelaçadas ao longo dos tempos por muitas gerações, a lenda do boto é água corrente de imaginação infindável, numa justificação social para a infração de regras, em tempos festivos, de galanteios às mulheres e de amores proibidos. E como há várias versões desta lenda, o melhor é sentarmo-nos junto ao rio e observá-lo, galanteador e pulando pelas águas amareladas da baía feita de muitas águas de rios que se esquecem dos seus trajetos.

Como é bom estar em Belém do Pará!

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