OS NOVOS HERÓIS DO MAR – OU O MUNDO VIRADO AO CONTRÁRIO
A era da mediatização mudou o mundo e a cada dia que passa mais óbvio se torna que vivemos numa espécie de Big Brother global, que ninguém ao certo sabe ao que irá conduzir as nossas existências e as sociedades em que vivemos.
Certo que nem tudo é negativo, mais informação circula e muita dela com qualidade, os conteúdos democratizaram-se e tornaram-se mais acessíveis, as notícias e os factos mais positivos e dignos de aplauso adquirem facilmente uma grandiosidade de quase heroísmo. Mas no reverso, o que surge como dúbio ou negativo, rapidamente é motivo para reacções de ódio visceral, condenações e linchamento na praça pública, discursos extremistas completamente exacerbados. O problema é que no meio disto, muitas vezes, não se consegue enxergar o que é verdade ou mentira, por mais polígrafos que a comunicação social nos apresente para tentar separar o trigo e o joio. Parece-me, por isso, que vivemos um tempo surrealista de sobreinformação, de overloading; um tempo em que a realidade ultrapassa já largamente aquilo que a ficção consegue criar.
Passou a desprezar-se o frugal, o parcimonioso e o invisível, ignorando-se grosseiramente que o essencial é invisível aos olhos, como um dia escreveu Saint-Exupery. A revolução tecnológica que entre outras coisas universalizou os smartphones, as smart tvs, as apps e, claro, as redes sociais, trouxe-nos uma vida mais facilitada e uma maior acessibilidade e conectividade digital que nos permite sermos mais eficientes na nossa vida pessoal e laboral e assim ganhar tempo para o essencial, mas também nos atirou voraz e definitivamente para o amor material, conduziu-nos a um “necessitadismo”, desculpem-me o neologismo, que pode ser descrito como uma espécie de sexto degrau da pirâmide de Maslow, que nos faz sentir necessidade de tudo mostrar, de tudo partilhar, um sentimento de que aquilo que não é visto nem expressado, não existe.
Já longo vai este intróito, mas era importante contextualizar o que vou dizer a seguir. Refiro-me ao circo que a cada dois anos é montado em torno das participações da selecção nacional de futebol nas fases finais dos europeus e mundiais da modalidade. O mais absurdo de tudo nem são os ecrãs gigantes e as fan zones, o abrupto término dos nossos quotidianos para nos reunirmos em frente da televisão mais próxima, os ateus agarrados a terços, os abstémios entretidos com a sua cerveja, os realistas clamando pela sorte ou mesmo o diverso naipe de espectadores que não sabendo o que é um fora-de-jogo ou o nome de um único jogador, grita emocionadamente quando é golo da selecção. Não me irrita assistir à multiplicação oportunista de comentadores e pseudo-especialistas em canais televisivos, rádios e jornais. Nada disso me chateia porque faz parte do carácter popular do futebol, que perceba-se ou não, é o desporto mais praticado, mais visto e que mais receitas, atenções e emoções desperta em todo o mundo.
Na alta competição, este é o desporto-negócio e, por isso, são milhões os que gravitam à volta dele com interesse no crescimento da irracionalidade, começando pela própria UEFA e acabando, por exemplo, nos comerciantes que lucram com o entusiasmo em torno da selecção. E isso é compreensível. Mas vê-se que se atingiu um nível alto de esquizofrenia quando se confunde uma equipa de jogadores seleccionados, com a representação absoluta de Portugal. A este nível, os meios de comunicação social e a classe política são os grandes instigadores desta falácia. Os primeiros porque nos fazem acreditar que as cores e o escudo da bandeira e a própria letra do hino foram feitos para a selecção nacional de futebol usar a cada dois anos, por esse mundo fora, em busca de feitos só comparáveis aos descobrimentos. A atenção que conferem a ganhar uma competição é maior do que relevar o sucesso dos nossos cientistas, empreendedores ou artistas e ganhar poderio como potência no futebol parece mais importante do que ser uma potência económica com assento no G7 ou subirmos no ranking dos países menos corruptos do mundo. Os nossos políticos também agem de forma lastimável, movidos pelo populismo mais bacoco porque nos querem fazer crer que o orgulho pátrio se recupera num jogo, mais do que por exemplo a dignificação de uma classe política imersa em escândalos e veiculam a ideia de que os atletas que praticam futebol são competidores de primeira e os das outras modalidades de segunda ou de terceira, mesmo que estes com uma centésima parte dos apoios tenham obtido conquistas objectivamente mais meritórias e a selecção de andebol é só um exemplo flagrante do que acabo de dizer.
É incompreensível que após o apito final do jogo que ditou a nossa eliminação no europeu, as televisões se tenham virado no instante seguinte para a entrevista com Marcelo Rebelo de Sousa, que do alto da sua sapiência futebolística disse que a selecção nacional não merecia perder e que o seleccionador fez bem e atempadamente as substituições. Igualmente deprimente foram as notícias de quase abertura dos telejornais a darem nota de que os nossos políticos guerrearam para terem a honra de representarem o Estado português nos jogos dos quartos, meias e final e estava já definida a escala dos altos dignitários para esses jogos, isto depois da rábula de Ferro Rodrigues que deu uma quase ordem aos portugueses para encherem comboios rumo a Sevilha.
O futebol como alguém disse um dia é quanto muito a coisa mais importante de entre as coisas menos importantes da vida. Tenho pena que quem mais se deveria disso lembrar tenha um comportamento cada vez mais confrangedor.