Tal como Aquilino Ribeiro, que tanto se interessou pelos regionalismos, traduzidos nas palavras ancestrais do povo das feiras, das festas e dos rebuliços, assim vou anotando palavras que vou ouvindo, em conversas informais, registando-as em crónicas que brotam de terra semeada.
No Cais da Fonte Nova, um lugar lindíssimo da cidade de Aveiro, onde estive por uns dias em tarefas profissionais, ia observando os moliceiros que completavam ou iniciavam mais uma viagem, cheia de pessoas, na sua grande maioria turistas, que gostam da tranquilidade da ria, entrecortada por canais mais humildes do que os de Veneza, a cidade das multidões, da praça de S. Pedro e das gôndolas.
Sendo ou não a Veneza portuguesa, Aveiro tem na sua história e nas suas gentes a presença do barco moliceiro. Foi usado, ao longo dos tempos, para a apanha do moliço, abundante nas águas sapais do Vouga, que entram pela cidade dentro através da ria.
O sentido de pertença a um lugar está no modo como olhamos e vemos. Por exemplo, observamos uma paisagem e vemos por detrás dela o seu passado, como qualquer um de nós faz com os os contornos da sua casa de infância, como se ainda estivesse cheia de vida, sabores ou imagens reais.
Falando com um colega de Aveiro, e tendo como base da conversa a ria de Aveiro e o barco moliceiro, descreveu-me o que era a ria, como as pessoas nela viviam e sobreviviam e de que modo se distinguiam das outras pessoas.
Nesses tempos idos, porque a cidade de hoje embelezou-se e entregou a ria aos turistas, havia dois grupos, que se distinguiam por viver fora ou dentro da ria.
Os ceboleiros eram os agricultores, vivendo na parte alta e tendo o campo como casa de banho, embora dependentes do moliço que enchia diariamente um sem número de barcos.
Os que viviam da ria, passando dias e noites no barco moliceiro, ou frequentavam as suas margens para tratar do moliço, recebiam o nome de cagaréus.
Sim, isso mesmo, sem qualquer dúvida, dizendo-me com orgulho o meu interlocutor, “Eu sou um cagaréu!”
O que significa este regionalismo aveirense?
Nada menos do que – e não vou escrever a palavra que ouvi, embora seja coincidente com a junção da primeira e da segunda sílabas – fazer do barco a casa de banho, na parte de trás ou à ré.