Somos muito seletivos nas imagens que guardamos de tempos idos, sobretudo daqueles que marcam a nossa infância mais tardia, talvez a partir dos seis anos, pois o que resta anteriormente a esse período da nossa vida é algo vago, indefinido, irresgatável.
A Casa da Veiga é, por conseguinte, uma arca inesgotável de memórias de infância, não tanto para mim, que fui o único dos quatro irmãos a não nascer nessa casa comprida de janelas e portas diametralmente simétricas, como se fosse um longo comboio parado durante séculos numa estação, mas essencialmente para os meus irmãos, e desses mais ainda para a irmã Rosa, que faz anos no dia em que escrevo esta crónica, e me brindou com mais uma imagem inesquecível da Veiga.
Como casa de lavradores que era, propriedade de senhores de Braga, ligados ao comércio, o trabalho era árduo para que o caseiro pagasse em milho a renda anual, à data marcada e independentemente das colheitas.
Assim, os jornaleiros e as jornaleiras sabiam que, em certos meses do ano, havia trabalho com fartura, na Casa da Veiga, atraindo também muitos mendigos ou pedintes – o que pela verdade da razão são iguais na condição e no grau de empobrecimento humano.
Se o trabalho agrícola era de sol a sol, regulado de forma igual para que todos não se esquecessem das suas muitas obrigações, e nem sequer supusessem os seus direitos, a alimentação tornava-se numa tarefa medonha, visível no frenesim de potes e panelas ou de pratos e tigelas ou de colheres e garfos (não, não me esqueci das facas) ou ainda dos comensais que diariamente se sentavam ao redor da mesa, no centro da cozinha, na qual sobressaíam a lareira, orientada para Este, o forno, direcionado para Norte, e os louceiros, virados para Sul.
Esta era a célula base da cozinha, havendo uma pedra comprida e larga que se demarcava do chão térreo e negro, com espaço para a mesa comprida, de madeira de carvalho, para a porta que dava para os aposentos, para uma janela e para a porta de entrada.
A vida da Casa da Veiga estava aqui, nesta cozinha sempre pronta para alimentar quem quer que viesse.
E nessa cozinha havia três louceiros, dispostos horizontalmente: um para os da Casa – e que bem me sabiam as tigeladas de leite acabado de ser ordenhado com broa de milho! – outro para os trabalhadores e ainda outro para os mendigos, que poderiam ficar nos palheiros o tempo necessário à recuperação das suas débeis forças.
Ou seja, e para quem quiser começar a escrever uma estória, na Casa da Veiga havia três louceiros…