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A propósito do caminho de Santigo

5 de Abril de 2016 | Utilizador Independente

Uma vez Peregrino, sempre peregrino

Rajesh Pai

Esta caminhada com 3 amigos budistas, em Setembro de 2015, a Santiago de Compostela, foi a minha terceira peregrinação.

A primeira foi em 2010, a Fátima (320km em 8 dias) e a segunda foi a Santiago de Compostela, em 2014 (140km em 3 dias).

Comparativamente com as duas primeiras, esta última caminhada (65 km em 3 dias) foi muito menos dolorosa e bem mais agradável. A ideia de andar menos e aproveitar mais foi uma experiência nova para mim através desta sabedoria budista, transmitida pelos meus companheiros de viagem.

O seguinte trecho é de Thich Nhat Hanh, monge vietnamita e famoso autor, e evidencia bem esta vivência:

“Uma vez eu viajei com uma delegação à China e subi Wutal Shan, uma montanha famosa lá. O caminho para o topo é muito íngreme e geralmente as pessoas chegam lá exaustas. São 1.080 degraus para subir.

Antes de sair eu sugeri à nossa delegação para respirar, dar um passo, relaxar, respirar, dar outro passo e voltar a relaxar. A nossa intenção era subir a montanha de forma que pudéssemos desfrutar de cada momento da escalada. A cada dez passos gostávamos de nos sentar, olhar em volta, respirar e sorrir. Nós não precisávamos de chegar… chegávamos em cada passo! Com paz, calma, solidez e liberdade. Quando chegámos ao topo, todos estavam tão felizes e cheios de energia. Cada passo, mesmo na subida mais íngreme, pode trazer a atenção plena, concentração, alegria e interiorização.”

Nós também caminhámos lentamente, fizemos muitas paragens pelo caminho para admirar as árvores, cursos de água, lagos e também os animais domésticos e de estimação. Meus amigos budistas falaram com os cães acorrentados, com os gatos que vadiavam pelas ruas, com os porcos e galinhas, no sentido de os pacificar da crueldade humana e insensibilidade para com a alma animal. Tudo isto era novo para mim e fez-me adquirir uma nova visão dos animais enjaulados.

Muitas vezes me pergunto por que é que as pessoas decidem fazer essas longas peregrinações, deixando o conforto de suas casas e família? Uma resposta a esta pergunta pode estar no nosso ADN, uma vez que os nossos antepassados eram nómadas e estavam sempre em movimento, andando de um lugar para o outro sem ter um lugar permanente. Como peregrinos nós também experimentamos o mesmo tipo de liberdade que os nossos antepassados, aquela liberdade que não temos na nossa vida quotidiana e rotineira. Estas longas viagens dão ao peregrino um certo grau de bravura e coragem que estão normalmente ausentes na nossa vida do dia-a-dia e não são sentidas de outra forma.

Uma outra razão que leva alguém a iniciar uma peregrinação pode ser um desejo profundamente enraizado na nossa mente de imitar o sucesso dos outros peregrinos, daqueles que já fizeram essa mesma peregrinação e foram bem sucedidos. Quando vemos os outros a fazer alguma tarefa física dura e difícil, como uma escalada numa montanha íngreme, um mergulho num oceano profundo ou uma caminhada longa, há uma ansiedade seca escondida na nossa mente que nos leva a admirar e invejar a coragem e bravura de quem consegue alcançar esses feitos. E então perguntamo-nos: conseguiria eu fazê-lo também?

Temos a tendência de viver a nossa vida, tanto quanto possível no conforto e luxo, então porque é que esse desejo surge para colocar o corpo numa situação de desconforto e muitas vezes de extrema dor física, fome, sede… e tudo isso voluntariamente?

Nós sempre procuramos os caminhos mais curtos para as nossas caminhadas diárias, então por que a determinada altura decidimos caminhar centenas de quilómetros?

Uma resposta poderia ser a inspiração de várias leituras, tais como algumas revistas que nos incentivam a fazer caminhadas e passeios na natureza. Outra resposta seria as conversas com os amigos onde absorvemos algumas das historias desses amigos que fizeram longas caminhadas ao longo das suas vidas e tudo isso dá-nos ânimo e vontade de também fazer grandes peregrinações.

Existe uma outra razão: a Penitência! Um castigo infligido a nós mesmos como uma expressão externa de arrependimento ou sacrifício religioso.

Durante o curso da nossa vida, há muitos eventos que são feitos de sacrifícios de outros para a nossa felicidade. Eu acho que há um desejo profundo na nossa mente para pagar essa dívida, infligindo um sacrifício ao nosso corpo. Quando a peregrinação é feita para um local religioso é para pedir ou pagar um favor a uma divindade. Esse sacrifício é dado ao corpo em três níveis:

Aos pés, ao estômago e à mente. Pés e estômago são fáceis de entender, a dor é causada aos pés pela caminhada longa e penosa e ao estômago por não receber a alimentação adequada durante a caminhada. Estes dois têm de ser submetidos à dor de sentir a penitência. O mais difícil de alcançar é manter a calma da mente durante a peregrinação. Quando essa calma é alcançada acontece um tipo de purificação e o peregrino começa a ter experiencias espirituais não esperadas. Isto é, o peregrino começa a caminhar para além do seu corpo, quando a mente perde o controlo sobre a Maya (mundo ilusório) e começa a tocar a consciência expandida.

Os resultados das peregrinações podem ser vários. Uma vez que um peregrino começa a gostar das experiências que o corpo e alma sentem durante a peregrinação, esta pode tornar-se num vício.

Eu conheci pessoas que dedicaram todo o seu período de férias (um mês!) à realização de peregrinações.

O significado religioso das peregrinações, diminuiu gradualmente no mundo ocidental. As pessoas fazem peregrinações para alcançar-se a si próprias nos momentos tranquilos da caminhada ou para conhecer melhor os seus amigos e companheiros de viagem.

Após um árduo esforço físico, de uma longa e extenuante caminhada, sabe bem uma boa e quente refeição confeccionada com ingredientes e sabores locais acompanhada com um bom vinho. Além disso, quando a mente está sob tensão ou depressão, a dor física da peregrinação faz com que esqueçamos essa dor psicológica, o que por si só é um grande alívio para a mente.

Comer, beber e dormir em lugares diferentes sem apego ao passado, é uma experiência libertadora concedida aos peregrinos. Durante séculos, as pessoas têm feito peregrinações a Santiago de Compostela a partir de diferentes pontos de partida e de várias maneiras; a mais usual é a pé, mas nos últimos anos o BTT tem-se tornado uma variante à peregrinação tradicional. Anteriormente era motivo puramente religioso, mas deixou de o ser nos dias de hoje. Agora não é mais que um caminho para oferecer uma nova experiência aos viajantes do mundo. E fornece emprego turístico para servir os milhares de peregrinos.

Apesar de tudo isto, eu devo dizer, que cada peregrino tem a sua própria razão para realizar uma peregrinação!

E uma vez peregrino, sempre peregrino!

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