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Apagar o fogo com gasolina

3 de Novembro de 2015 | Assírio Bacelar
Apagar o fogo com gasolina
Opinião

Sabe-se (a votação eleitoral do passado dia 4 não deixa disso a menor dúvida) que o país está dividido entre aqueles que mais afectados têm sido pelas medidas de austeridade impostas pela União Europeia, medidas que o Governo presidido por Passos Coelho entendeu não só respeitar escrupulosamente como até excedê-las, e os que, mesmo tendo sofrido cortes nas suas remunerações ou reformas, por estas serem elevadas, mantêm um nível de vida razoável;

Sabe-se, e muitas foram as manifestações de rua que o comprovam (relembre-se, por mais expressiva, a da contestação à TSU), algumas das quais levaram os principais governantes a acautelar a sua segurança com um forte reforço de guarda-costas e dispositivo policial, como muitas dessas medidas deram origem a um surto monumental de emigração qualificada, constituído maioritariamente por jovens licenciados de formação custeada por todos nós, que é tanto mais grave porquanto na maior parte dos casos não será transitória mas sim definitiva, e deixa o país desprovido do valioso contributo que poderiam dar para a sua recuperação e desenvolvimento económico;

Sabe-se como outra nefasta consequência dessas medidas foi o brutal aumento da taxa do desemprego e o desaparecimento de milhares de pequenas e médias-empresas (aquelas de cuja defesa o vice -Primeiro-ministro Paulo Portas chegou a fazer bandeira), devido à excessiva carga de tributação fiscal e à falta de apoio bancário;

Sabe-se como as políticas do Governo da Coligação foram de todo inadequadas e gravosas em sectores tão importantes e fundamentais como a educação, a saúde, o Estado social e a justiça;

Sabe-se como a despesa pública, contrariamente aos propósitos iniciais desse Governo, aumentou em vez de diminuir e como o défice da nossa dívida externa seguiu o mesmo percurso, não obstante os dinheiros resultantes das privatizações que devem ter entrado nos cofres do Estado e os enormes sacrifícios exigidos ao cidadão comum;

Perante tudo isto e o muito mais que se poderia acrescentar, que é a expressão verdadeira da realidade do país, qual foi a atitude do nosso mais alto representante?

Fechar os olhos a essa realidade e como um bombeiro demente apagar o fogo com gasolina. Ou seja, acicatar ainda mais os ânimos políticos e civis, apelando ao divisionismo e fomentando uma radicalização da vida política com graves consequências económicas.

Em lugar de proceder como o fiel de uma balança, neste caso política e institucional, desnivela-a, favorecendo uma das partes, aquela ao lado do qual sempre esteve, com uma argumentação que tem tanto de inconsequente e contraditória como de falaciosa.

Desrespeitando o mais alto e nobre dever de um Presidente da República, representar e unir todos os portugueses à volta de um projecto de governação conciliador e agregador, tão necessário ao bem-estar da Nação e de todos nós, torna-se ele próprio o epicentro da crise política e factor de instabilidade.

Daí que o seu discurso, todo ele demasiado crispado, tendencioso, antiparlamentar e antidemocrático, fundamentado em princípios e pressupostos sem qualquer validade e fortemente marcados por uma ideologia de direita, mereça as maiores críticas de quem não faz parte da sua tribo política e de quem, de forma independente e isenta, procura analisar todos os ângulos de uma mesma situação.

Se é certo que em princípio deve governar quem obteve mais votos não é menos certo que para uma situação excepcional, em que a Coligação embora vencedora não tem a maioria parlamentar, se devia pôr de lado esse princípio ou tradição, e encontrar uma solução governativa que fosse estável e duradoura.

Sendo igualmente certo que a Assembleia da República, pelos poderes que lhe confere a Constituição, não só tem a possibilidade de impedir a legislação normal do Governo nomeado como pode, ela própria, legislar e avocar muitos actos que esse Governo venha a praticar, gera-se pois um conflito que um Presidente cônscio dos superiores interesses da Nação tinha a obrigação de evitar.

Ao contrário do que afirmou por várias vezes, ficou em evidência que nunca foi um presidente de todos os portugueses, merecedor de todo o nosso respeito e admiração. Mais ainda. Se persistir irresponsavelmente em manter o impasse que provocou, indo este ao ponto de degenerar num Governo de gestão, com todos os agravos daí decorrentes, agravos que poderão, esses sim, comprometer de forma irremediável a estabilidade de que o país precisa para sair da crise em que mergulhou, poderá Cavaco Silva estar certo de que, sobretudo na condição de Presidente da República, deixará à maioria dos portugueses as piores recordações. E que será com essa triste e pálida imagem que irá ficar na história do presidencialismo da Segunda República.

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