Há uns 20 anos ofereceram-me um livro que sempre cá ficou: “O Deus das Pequenas Coisas”, da autoria de Arundhati Roy. Sei que vibrei com as peripécias de uma família no sul da Índia mas o que perdurou sempre foi o título (muito) feliz, de que me lembro em inúmeras situações da vida. Tento, o mais possível, ter esse “Deus” por perto, o das coisas que diariamente fazem da vida algo que vale a pena.
Conto-vos hoje que em Infesta, na casa dos meus avós maternos, havia três sofás. Um grande, de três lugares, e dois cadeirões pequenos. Já lá estavam quando eu cheguei em 1981 e viram-me crescer, a mim e aos meus, até quase aos dias de hoje. De uma napa verde, o grande dava para abrir em sofá-cama e era onde dormíamos, eu e a Sara, todos os verões e fins-de-semana que lá íamos. Acolheram e aconchegaram os nossos sonhos durante anos, ampararam os cansaços felizes e, se falassem, teriam certamente muitas histórias para contar. Fizeram parte de todas as comemorações, desde Natais a Páscoas, passando pelas Bodas de Ouro dos meus Avós e de todos os dias sem história, que fazem as delícias do tal Deus de que vos falei antes. Há inúmeras fotografias de todos, em variadíssimas situações e diferentes idades, nos benditos sofás fazendo deles parte integrante (e com maior conforto na memória do que nas costas) da história que construímos dentro daquelas paredes.
O tempo passou pelas pessoas, assim como pelos móveis e também pelos sofás. Chegou a altura de os substituir, tornando a casa mais confortável e bonita sendo que nestas trocas sobrou apenas um cadeirão verde, “depositado” ao pé do telefone para que a minha avó pudesse sentar-se a falar confortavelmente com a família. E por lá ficou.
A casa cheia de memórias foi-se esvaziando de gente. O tempo é implacável e o decurso da vida não tem retrovisor. Devemos tê-lo nós, penso, certa de que as histórias bonitas valem pelas pessoas. Não estão na napa de nenhum sofá mas no coração de quem as viveu. Só esses corações conseguem interpretar e reconhecer as paredes e mobílias que ampliam o Amor.
A minha irmã, que tal como eu preza muito as raízes e sabe de onde vem, comprou uma casa e está a decorá-la. Lembrou-se do cadeirão verde que jazia ainda ao pé do telefone que já não toca há muito. Pediu aos tios o sofá para que pudesse dar-lhe uma outra vida, levando um pouco do seu passado para o seu futuro. Ninguém se opôs mas também ninguém achou ser uma grande oportunidade. “Está todo estragado.”, “Se calhar até está podre.”, “Há muitos sofás novos mais bonitos”. Mas a Sara não desarmou. Sabia ao que ia.
Levou cuidadosamente o cadeirão para não deixar cair nenhuma recordação e vestiu-o com roupa nova. Agora é um lindo sofá azul clarinho no seu escritório. Prontinho a absorver novas histórias. Mas afinal, qual a pequena coisa no meio de tudo o que é grande aqui?! Pois bem, a minha mana, aquando da renovação do sofá, pediu ao estofador que guardasse os botões originais. Os verdes, na napa que nos leva directamente à sala de Infesta. Depois de ter o sofá no seu novo espaço achou por bem agradecer uma vez mais a oportunidade que lhe foi dada. E dentro de uma linda caixa de veludo com uma foto do “novo” cadeirão, enviou um botão verde a cada um dos filhos da casa do Loureiro para, escreveu ela, “termos todos um bocadinho da mesma peça em nossas casas”.
Segundo o meu Deus das Pequenas Coisas, os sorrisos que plantamos dentro dos outros são uma das razões mais válidas para andarmos aqui. Coisas que aprendo com a minha Grande Mana e que humildemente transformo em Coisas Minhas.