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COVID-19 E UM RELATO NA PRIMEIRA PESSOA

28 de Abril de 2020 | Manuel Tinoco
COVID-19 E UM RELATO NA PRIMEIRA PESSOA
Destaque

ENFERMEIRA DO CENTRO DE SAÚDE DE PAREDES DE COURA EM ISOLAMENTO

Fui abordada no sentido de fazer partilhar a minha experiência com a covid-19. Disse que não faria porque não gosto de me expor, mas na verdade é porque não gosto de escrever! Fica sempre muito por dizer. Contudo o argumento foi muito válido – “a tua experiência pode ser benéfica para evitar outras situações”, e aí sim! Se com o meu testemunho puder alertar, sensibilizar e consciencializar para comportamentos no sentido de se minimizar o contágio desta doença, vale o esforço, nem que seja em apenas uma pessoa.

Muito se fala desta doença, mas na realidade acho que ainda muito pouco se sabe, uma coisa porem é certa, é altamente contagiosa, ao mínimo descuido o vírus não falha.

Mas eu falhei! Conhecia os riscos, as possíveis formas de contágio, atitudes correctas e apesar de tudo fui apanhada na trama. Procuro uma desculpa para esta minha falha, foi nos primeiros dias que fui infectada, as nossas atitudes e gestos não se mudam de um dia para o outro, e estava focada em criar condições para evitar contágios – que utopia! mas isto não pode ser desculpa, não pode ser válido.

O primeiro caso de Covid-19 em Portugal foi no dia 2 de Março, ficámos todos em estado de alerta disponíveis para intervir. No dia 15 de Março e não foi por ser domingo e sermos convocados às 12:00 horas para reunião urgente, que nos detivemos a apresentarmo-nos para prepararmos o Plano de Contingência do Centro de Saúde.

A partir deste dia todos os profissionais de saúde estavam focados no combate a esta epidemia, com grande esforço, com recursos escassos, nomeadamente equipamentos de protecção individual. Apontar culpados? Sim, isso é fácil, mas neste momento mais que apontar críticas e falhas do sistema é importante reunir sinergias, dar contributos, quer de grupos quer individuais.

E foi isso que eu vi acontecer no concelho de Paredes de Coura, várias entidades a investir em prol da saúde do concelho, e alguém de forma individual que na azáfama estrutural, e emocional, teve a capacidade de silenciosamente se desdobrar em contactos de forma a que os apoios surgissem.

A cada apelo éramos atendidos, tínhamos de reinventar medidas para dar resposta a outras medidas, e víamos o empenho com que colaboravam connosco, desde máquina de lavar roupa a máquina de secar nos foram instalar, sim porque não tínhamos equipamento para trocar diariamente e não deveríamos levar para casa. E desafiando normas nacionais operavam-se “normas concelhias”! Correto?! De facto temos de seguir as normas nacionais, mas se assim fosse, eu não teria sido diagnosticada e foi isso que permitiu saber que estava infectada com o Coronavírus. Pelas normas vigentes eu não seria testada naquele momento, não reunia critérios. Temos de respeitar a visão e as medidas nacionais, mas o Município interveio e foi possível atempadamente travar um possível contágio maior. Sim porque apesar de estarmos devidamente equipados e (in)formados, falhei na minha protecção, sim, sensação tenebrosa, e isso é terrível! No momento em que vi o meu resultado, não tive medo da doença, não consegui pensar em mim, não consigo descrever, explicar o que senti, sensação de abandonar o barco, virar as costas, sentir que deixamos um grupo de trabalho, em que todos somos poucos, foi o pior momento. A seguir o medo de ter infectado a minha família de casa, a minha mãe, de risco pela idade, o meu marido, pelos possíveis contactos deles e os meus filhos, que não tinham de ser vítimas da minha falha. Partindo do princípio que todos são saudáveis e que as consequências não seriam graves. Mas sabemos que não é condição sine qua non, temos conhecimento de mortes de pessoas jovens e saudáveis, portanto não sabemos como o organismo vai reagir.  Daí que o pânico de quanta gente poderia estar infectada, apesar de considerar que estava a ter os comportamentos mais adequados e indicados, e de estar a cumprir o isolamento social. É um sentimento desolador, difícil de expressar. Para além dos sintomas que o vírus provocara, este era o pior sintoma, sentimento de responsabilidade de culpa.  Em casa desde o primeiro dia, tinha e tenho a que chamo “plano de contingência familiar”, com regras muito estabelecidas e a serem cumpridas por todos. Contudo tinham sido postas em causa. Felizmente este plano de contingência familiar funcionou e os meus familiares testaram negativo.

Alívio sim, mas tiveram de ficar em quarentena, outra sensação penosa, todos confinados à espera do aparecimento de sintomas, dependentes de terceiros para os bens essenciais, para darem resposta a compromissos, para fazerem os “recados” do dia-a-dia. É difícil o isolamento social, mas muito mais difícil o confinamento. É ficar sem liberdade total!!

Em horas temos de readaptar as nossas vidas!

Os sintomas físicos considero terem sido moderados, de fácil tratamento, sem necessidade de recorrer ao serviço hospitalar, o que provavelmente acontecerá com a maioria das pessoas, contudo os “sintomas” psicológicos são bem mais penosos e esses sim de difícil tratamento e que deixam sequelas. Porque da febre e da dor de garganta eu já esqueci, o dia em que deixei a Equipa, nunca vou esquecer.  Primeiro a sensação de abandono de um grupo de trabalho numa fase crítica, depois o ficar fechada num quarto, não sabemos quanto tempo. O quarto passa a ser a nossa cozinha, sala de estar, lazer, escritório, ah! e onde dormimos.  Equipamos o nosso quarto para isso tudo, e para que não falte “nada” efectivamente até a máquina de café lá coloquei, não faltava o café, as bolachinhas o chocolate, faltava o momento, aquele momento em que tomamos café com quem nos dá mais prazer, que nos dá alento para continuarmos a caminhada! Tinha de estar só!   Portanto este café era amargo!

É sentir que colocamos amigos e família em alvoroço, com medo do que possa acontecer, a ficar dependentes deles para as refeições, para as lides domésticas, sim porque nesta fase quanto menos gente em casa “melhor”, jamais considerei pensar assim. É dizer adeus pela janela, é brincar com os filhos com uma barreira de uma janela, e o toque, o abraço, sentimo-nos sós, tao acompanhados, tão aconchegados e tão gratos por tantas chamadas e mensagens e ao mesmo tempo tão sós, falta o toque, a socialização.

E depois sentir que era mais uma sobrecarga para os profissionais de saúde que todos os dias tinham de me ligar, para fazerem a minha vigilância, e da minha família, era a GNR, que também tinha de cumprir com o dever de garantir que estávamos confinados em casa, garantindo assim a protecção da população. Diferentes sensações, contraditórias por vezes, e dava por mim a fazer avaliação do trabalho que estava a ser feito, não conseguia separar o dever do profissionalismo destes agentes da saúde, da segurança, da política e da sociedade em geral, quer individualmente quer em grupo as pessoas foram organizando-se e contribuindo com o que podiam. Talvez por isso e pelo comportamento responsável dos cidadãos o número de casos em Paredes de Coura esteja estacionado.

O isolamento é efectivamente o melhor recurso, podemos conversar com o vizinho, mas sempre à distância, temos de ser disciplinados, muito disciplinados e se o medo for motivo para termos as devidas precauções então tenham medo, muito medo, que assim ficam protegidos e protegem o outro.

O uso de máscara é fundamental, em casa sempre usei, não era cirúrgica era um lenço de tecido, à mesa ficava distanciada dos meus familiares, e tínhamos circuitos diferenciados, penso que terá sido isso, com mais um pouco de sorte, que os terei protegido.

Muito fica por partilhar.

Estou muito grata a todos!!

 

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