Convido os leitores a mergulharem nesta vivência e percurso de um natural do Alto Minho, esmiuçando a ligação familiar a algumas freguesias do concelho de Paredes de Coura e a conexão a outras paragens.
Sou natural da vila de Paredes de Coura. Admito que para muitos não seja uma das melhores e mais bonitas vilas do Alto Minho. A verdade é que foi aqui que nasci e tenho familiares que provieram da freguesia de Cossourado, a quem chamam os Barros; de Venade, da freguesia de Ferreira, a quem chamam os Barbosas; da vila, a quem chamam os Machados; da freguesia de Padornelo, a quem chamam os Eira Velha; da freguesia de Pias de Baixo, do concelho de Monção, da família Gonçalves Carneiro e o Luís Estanislau de A Guarda, Província de Pontevedra, da Região Autonómica da Galiza que, a meu ver, só difere do Minho por pequenos pormenores, fazendo parte da chamada Ibéria húmida.
Gosto de Padornelo, onde passei as férias da minha juventude em casa de meus avós maternos, construída pelos meus ancestrais em 1647, de acordo com a escritura de obra de pedraria, recolhida pelo Sr. Jofre de Lima Monteiro. Recuando nos limbos do passado, recordo-me que a nossa praia era a de Casaldate, situada na margem direita de um dos regatos ou ribeiros que formam o Rio Coura, num local bucólico e os montes por onde andávamos eram o dos Palheiros, o do Manjoeiro e a encosta da Mariquinhas, prosónimo dado a Maria Custódia Barbosa, minha trisavó, irmã que foi do Padre António José Barbosa e sobrinha do Padre António Pedro Alves, dois grandes artífices e entusiastas, segundo Narciso Alves da Cunha, da Capela do Senhor do Ecce Homo, ou Igreja do Ecce Homo, por actualmente ser a Igreja Paroquial da freguesia e um dos melhores exemplos da arquitectura barroca existente no concelho de Paredes de Coura, com a construção iniciada em 1779, em pleno reinado de Dona Maria e cujas pedras sepulcrais do pavimento, que capeavam o chão, foram em tempos, lamentavelmente, retiradas para local incerto. Padornelo, com parte dos lugares expostos a sul e poente, onde o pôr-do-sol, sempre especial, ganha um novo sentido num horizonte com variações de cores de laranja, vermelha e rosa, que podemos observar, lentamente, no horizonte com uma imagem privilegiada sobre a sede do concelho e a Serra de Arga, lugar onde se realiza uma das maiores e tradicionais romarias do Alto Minho, em que na memória perduram algumas imagens, vivências e histórias do passado.
No Verão, como era natural, a minha vida e de meu irmão expandia-se também a muitas zonas urbanas da freguesia. Crescemos entre a Sr.ª Maria de Simão, que nos enchia os bolsos de nozes, fruto da grande nogueira que existia no aido de sua habitação e, mais perto de casa de meus avós, a nossa amiga Sr.ª Isaura Custódia da Costa, “a tia Zaura”, com a bonita idade de 98 anos, recentemente comemorados, que nos presenteava com os bolos do tacho. Recordando a afinidade da Sr.ª Maria de Simão com outras pessoas, relembro que era irmã do conhecido Padre Casimiro Rodrigues de Sá e do Sr. Eleutério Rodrigues de Sá, pai de pessoas de bom carácter desta freguesia e, ainda, do nosso conhecido Eleutério Sanches, natural de Luanda, poeta, artista plástico, músico e professor de Artes Plásticas, falecido em 12 de Dezembro de 2016. Ao passar no Sobreiro, recordo-me das lojas do Sr. Horácio e da Sr.ª Lina de Júlio. E ainda antes dos Tojais, tínhamos a loja do Sr. Infante, bisavô da Carla Lima, actual correspondente deste jornal em Padornelo. Descendo um pouco mais, passando por Lamarigo, chegamos aos Tojais e lá encontrávamos a loja do Sr. António Barreiro, onde se fazia a entrega do correio e dos jornais matutinos, para os poucos assinantes que existiam, com um interior interessante e cuja beleza dos balcões e prateleiras sobrepostas se mantêm em bom estado, preservados pelos actuais proprietários; o comércio que se situava mesmo na parte posterior da Igreja do Senhor Ecce Homo, cujos donos eram o Sr. Aurélio, sua irmã e seu irmão Sr. Manuel; a mercearia do Sr. Joaquim das Eiras e, por último, o estabelecimento e a taberna do Sr. Guilherme, sendo este aquele que mais tempo, naquela zona da freguesia, se manteve aberto ao público. Encerraram, também, a padaria da famosa “padeca” do Sr. Mário Palheira, as indústrias de ferreiro e do latoeiro, o posto do leite e, por fim, as duas oficinas destinadas ao conserto de calçado e tamancos, mais conhecidas pelo Sr. António e Sr. José Caseiras. O “Zé Caseiras” é pai do nosso afamado atleta Joaquim Sá, grande propulsor do atletismo, hoje a correr pelas cores de Arcos de Valdevez (CAAV) que, apesar de ser ainda um proeminente maratonista, brilha em provas de velocidade, ultrapassando a nível mundial, na prova da milha, o norte americano Donald Loewe em 50 segundos, com o tempo de 6.11.14. Aos sábados de Padornelo, dia de feira, para além das pessoas que acorriam aos Tojais para comprar e vender, lá víamos o Sr. Zé do Germano, com as tesouras e navalhas de fazer a barba, religiosamente transportadas numa pequena mala de madeira, com os cantos em malhetes, para “tosquiar” quem necessitava e onde os aguadeiros, naquela balbúrdia, circulando pelo meio dos feirantes, vendiam água do chafariz com limão e açúcar, num recipiente forrado a cortiça, as geleiras daqueles tempos.
Todos estes locais fizeram parte da minha vida como frequentador, bem como dos habitantes de Padornelo e constituíram, a par da agricultura, o principal rosto da economia da freguesia. Os estabelecimentos desta localidade só mais tarde foram servidos por estrada em macadame e tinham uma razoável clientela que dava vida à freguesia, principalmente, naquele dia de feira quinzenal, já em decadência na minha juventude, acabando por se extinguir após a construção da referida infraestrutura rodoviária. Já na Outra Banda também fecharam as mercearias do Sr. Constantino e do Sr. Eugénio e, mais recentemente, o café e loja no lugar das Angústias do Sr. Fernando Pedrosa, num total de dez estabelecimentos comerciais que deixaram de existir em Padornelo. De facto, tudo isto conseguia manter viva e dinâmica esta freguesia, apesar da vaga maciça de emigração para França, a partir de 1960. Importante fazer vir à memória que muitos, durante o período do Estado Novo, partiram “a salto”, com a camisa de estopa que tinham no corpo, ludibriando as autoridades na procura de trabalho e melhores condições de vida. Esta alteração do agregado familiar veio obrigar as mulheres dos emigrados a dedicar-se mais ainda aos trabalhos do campo, onde se viam a caminhar, de pés descalços, levando à cabeça pesadas cargas.
As casas na sua maioria de rés-do-chão e primeiro andar, eram de traça muito simples, onde podíamos ver no primeiro andar habitação, no rés-do-chão currais de gado e armazéns de alfaias, com um local onde apenas se faziam as necessidades fisiológicas implantado em algumas extremas, numa minoria, das varandas minhotas. Quem foi viver para outras paragens, ao contrário daqueles que sempre residiram na aldeia, passou a ter a possibilidade de desfrutar, principalmente, de melhores condições de vida urbana, mas não teve a solidariedade deste povo que se pode manifestar numa simples assistência moral e não sente a diversidade do fenómeno da natureza, como seja ouvir o chilrear dos pássaros e até o cantar do cuco, nem respira o ar puro destas paragens. Não foi por mero acaso que o Fundo de Assistência dos Caminhos de Ferro do Estado Novo, resolveu em 1934 construir, na freguesia de Mozelos, o Sanatório Presidente Carmona, instituição de saúde destinada a ferroviários. Todos aqueles que foram obrigados a partir, deixaram de presenciar e participar nas mais diversas actividades agrícolas realizadas de forma cooperativa e solidária e que eram as sementeiras; as desfolhadas; as malhadas e as vindimas, sem esquecer a tradicional matança do porco, vital para a economia familiar e que se traduzia num acto festivo e vicinal, com tradicional banquete, de um animal bem tratado e que nada faz durante a vida, mas acaba por ter a mais curta existência.
MEMÓRIAS DE UMA VIDA PASSADA ENTRE PADORNELO, AS VILAS DE VALENÇA E PAREDES DE COURA E A CIDADE DE LISBOA
Para mim a província sempre me despertou interesse. Grande parte do povo vivia da agricultura e poucos saíam para além da Vila. Havia quem não tivesse saído do Município de residência e quando necessitavam de se deslocar à sede do concelho caminhavam uma hora a pé por carreiros e caminhos em muito mau estado. Ver o mar era, para muitos, algo desconhecido. O médico e todos os outros que nos visitavam, pela parte norte da freguesia, deixavam o carro no lugar da Cabeluda e percorriam cerca de um quilómetro pelo trilho, em terra batida, até aos locais do Sobreiro, Veiga de Cima e Veiga de Baixo. O jornal, “Primeiro de Janeiro”, que chegava aos meus avós todos os dias, com excepção do domingo, dava para poucos o poderem ler e tomar conhecimento, dentro do possível, como ia a política no país e no estrangeiro. A televisão, a preto e branco, só existia em duas tascas, com bancos de madeira artesanais corridos, uma no Sr. Eugénio, num barracão que se situava na Outra Banda, lugar no lado oposto ao povoado da Veiga/Sobreiro e uma outra no referido lugar dos Tojais, no negócio do Sr. Joaquim das Eiras. A rádio, em onda média, dava-nos música, os noticiários do regime e, pelas 13 horas, depois do almoço e na hora do café, lá surgia, para não variar, o grupo de comediantes portugueses denominado “Os Parodiantes de Lisboa”, com o “Patilhas e Ventoinha” e, ao fim do dia, tínhamos o “telefone toca” e o folhetim diário, as novelas de hoje, patrocinado pelo “Tide – lava mais branco”, sem esquecer, pelo meio da tarde, a Volta à França e a participação do nosso Joaquim Agostinho. Por volta da meia-noite, com tudo bem fechado, o meu avô tomava conta do rádio a pilhas marca “Siera” para, em ondas curtas, tentar ouvir as notícias da rádio de Moscovo e da BBC de Londres.
Nos domingos não cinzentos de Verão, sempre que era possível, realizávamos refeições ao ar livre num local relativamente perto da recta do Pereiro, confinante com a Estrada Nacional n.º 301, do lado direito quem vai no sentido do Extremo, que meu avô chamava “hotel da porcalhota antigo da caralheta”. Era neste agradável espaço que nos encontrávamos com uma família, compadres de meus avós, vinda de Arcos de Valdevez, num Dodge Charger, e partilhava-se o que cada um levava para o agradável convescote. Muito mais tarde vim a saber que nesse espaço improvisado, com uma nascente de água e uma frondosa carvalheira, havia sido, em tempos, implantada uma palhoça provisória na qual se confeccionava e vendia o caldo para os operários que construíram à pá e a alvião a ligação da Cabeluda à referida localidade do Extremo, já do concelho de Arcos de Valdevez. Um pouco antes de chegarmos à Igreja de Nossa Senhora da Natividade, daquela freguesia, existe um local estratégico que serviu para defesa de Portugal na Guerra da Restauração, denominado “Forte de Bragandelo”, sítio que a Câmara Municipal de Arcos de Valdevez está a valorizar como mais um activo turístico e cultural.
Recordando Valença do Minho, onde estivemos a residir cerca de quatorze anos, um concelho muito mais movimentado graças à fronteira, não posso deixar de evocar as indústrias que foram ícones deste concelho, principalmente, a Fábrica “Chocolates Farruco”, a de tecidos “Gandra” ou “Fábrica dos Durães”, a “Fábrica de Refrigerantes Formigosa” e a de fabrico de ténis e botas de água na denominada “Pinta Amarela” que, a par de um pequeno contrabando do café para a Galiza, levado a cabo pelas gordinhas heroínas conhecidas por “trapicheiras”, reduziam a pobreza e o desemprego no concelho.
Naquele concelho fronteiriço, tive os meus parceiros e alguns amigos no Colégio de Nossa Senhora de Fátima, ou Asilo Fonseca, edifício dos princípios do século XX, hoje lamentavelmente em ruínas, cuja maioria nas férias por lá ficavam. Ao invés daqueles comparsas, eu e meu irmão apanhávamos a “carreira” da Empresa de Transportes Courense e vínhamos de Valença até à vila de Paredes de Coura, onde uma viatura a que chamávamos “carro de praça” nos levava até ao “interface” do lugar da Cabeluda, já na freguesia de Padornelo, onde as viaturas ficavam ou regressavam à vila, seguindo-se uma caminhada, pelos tais trilhos, até casa de meus avós. As pessoas que só víamos naquela altura, muitas analfabetas, submissas e algumas resignadas, que não significa nem ignorância nem imoralidade, despertavam-nos curiosidade e interesse em ouvi-las nos mais variados temas que nos encantavam e fascinavam e dignas da atenção de qualquer um. Aquilino argumentava, num artigo que descobri de 1926, ano de nascimento de minha mãe, do jornal “O Século” «que as aldeias portuguesas formavam um conglomerado triste, selvagem, paupérrimo, que datava, não da Idade Média, mas dos tempos bárbaros. Sustentar que tal atraso resultava do analfabetismo não passava de um absurdo, pois o analfabetismo era o efeito, não a causa”. E acrescentava: «No dia em que saber ler e escrever lhes seja tão útil como saber governar o arado, plantar feijões, ou até jogar o pau, nesse dia as escolas, as mais anti-higiénicas e lôbregas escolas de Portugal abarrotarão de estudantes».
Após o falecimento de nosso pai, deixámos o Alto Minho e partimos até Lisboa. O meu sentimento por aquilo que nos aconteceu era extenso e profundo e vinha-me à memória uma frase que minha mãe ouvia de um senhor residente perto dos Tojais, que me reservo de dizer o nome, mas muitos conheceram: “Ai menina hoje o dia correu-me tão bem que chego à conclusão que Deus não se lembrou de mim”. Minha mãe, muito religiosa, dizia-lhe: “O Sr. não diga isso que Deus ainda o castiga”. Naquela altura, para um rapaz da província, Lisboa sempre despertava curiosidade e, apesar do campo e das vinhas serem para mim importante, as viagens ao Norte, isto é, à aldeia para quebrar a melancolia, preservar os amigos, ouvir estórias, lendas e tradições, só passaram a ocorrer pelo Natal e em pleno Verão.
Como a auto-estrada acabava, ao fim de 10 quilómetros entre Lisboa e Vila Franca de Xira, tínhamos pela frente, no mínimo, 8 horas de carro para matar as saudades da comunidade e da ligação sentimental a Paredes de Coura. Esta auto-estima que sempre tive pela terra onde nasci, não significa que concordasse e tivesse de aceitar acriticamente a energia construtiva, na extensão afecta ao domínio público, que se veio a verificar na vila de Miguel Dantas, em pleno regime democrático, e que só o tempo poderá vir a demonstrar a utilidade de tudo o que se fez. Quem parte da sua terra, na maioria das vezes, sente quase sempre a necessidade de voltar à terra para “matar saudades”. Como nos dizia Alfonso Daniel Rodriguez Castelao, figura mais relevante da história da Galiza do século passado e símbolo do nacionalismo galego, que chegou a representar Portugal na ONU: “Há uma força que nos empurra para o mundo e outra que nos une à terra nativa…”.
Apesar da guerra colonial, da vigília de 48 horas na capela do Rato em Lisboa, das homílias ao domingo, do Padre Mário de Oliveira, em Macieira da Lixa e do III Congresso da Oposição Democrática de Aveiro, estava longe de imaginar que em Abril de 1974, um grupo de capitães resolvesse derrubar o Estado Novo, em resultado da aprovação e publicação, pelo Governo de então, do Decreto Lei n.º n. º 353/73, que procurava fazer face à escassez de capitães dos quadros permanentes, chegando-nos a liberdade por acréscimo. Após o referido golpe militar do 25 de Abril, liderado pelo estratega Otelo Saraiva de Carvalho e o rosto mais visível de toda a operação militar que se chamava Salgueiro Maia, dão-se profundas alterações na sociedade portuguesa, acabando a Assembleia Constituinte por aprovar a nova Constituição da República Portuguesa, que revogou a Constituição de 11 de Abril de 1933.
Como português e minhoto sinto-me feliz por constatar que, com a chegada da democracia a Portugal, por um lado, a situação a nível das infra-estruturas e, principalmente, da saúde melhorou de uma forma imensurável através da criação do Serviço Nacional de Saúde e, por outro lado, prossegue a diminuição da iliteracia com a possibilidade de todos estudarem, do que resultou uma redução muito significativa do abandono escolar, não se verificando o sentimento de tristeza que acompanhou ao longo da vida, desde a infância à velhice, gente extraordinária que tive o prazer de conhecer e com quem muito aprendi.
Luís Estanislau