A propósito das páginas que o NC tem vindo a dedicar aos restauradores courenses que marcam a letras de oiro a indústria hoteleira de Lisboa e arredores, parece-me oportuno ressuscitar uma prosa que levei a efeito há uma boa vintena de anos em homenagem, sobretudo, a todos quantos desbravaram o caminho. Cá vai, pois.
Aliado à magreza de perspectivas de um futuro que em Paredes de Coura não se apresentava risonho, o espírito combativo do courense é o grande responsável pela sua abalada do rincão natal. Marcado pelas carências extremas da terra que o viu nascer, o courense, inconformado e dinâmico, tornou-se assim num verdadeiro “trota-mundos”. Terra madrasta aquela que não consegue acarinhar os seus valiosos filhos, obrigando-os a zarpar ao encontro de condições que lhes permitam concretizar os seus legítimos anseios!
Competente e dono de uma enorme capacidade de trabalho, o courense atingiu invejável projecção, de tal modo são reconhecidas e elogiadas as unidades restaurativas da sua lavra.
Desde Sintra a Setúbal, de Malveira a Almada, de Parede à Caparica, da Amadora a Alverca, de Odivelas a Algés, de Carnaxide a Bucelas, de Caneças a Cascais, calcorreando as velhas calçadas lisboetas de Alfama, Mouraria, Graça, Castelo, passeando nas belas praças e avenidas da cidade requintada, e que mais eu sei!, encontramos estabelecimentos do ramo, propriedade de courenses que se apresentam como meritórias referências para qualquer bom gastrónomo que se preze.
Este verdadeiro fenómeno que, actualmente, mais e mais se vai alastrando na indústria hoteleira da Grande Lisboa, tem a sua génese no labor desenvolvido por alguns jovens que – quais pioneiros! – desbravaram o caminho, corria a década de vinte de Novecentos. Hoje possuímos mais de quinhentas, disse bem, quinhentas!, casas do ramo e afins; há setenta anos, eram meia-dúzia os rapazes que se aventuraram de Coura até à capital, dirigindo-se a um precário emprego de aprendizes, em carvoarias e tabernas. Foram os marçanos desses tempos, alguns ainda hoje, estoicamente, empresários activos de restaurantes, quem criou a tradição do courense viajar até Lisboa rumo àquela que é agora a área restaurativa, evolução natural das saudosas tabernas de antanho.
Tradição que se mantém firme, graças às influências dos familiares que primeiro abalaram para Lisboa e à vontade hoje e sempre manifestada de repetir o bom sucesso alcançado pelos vizinhos da aldeia.
A larguíssima maioria é oriunda de algumas das freguesias mais ocidentais do concelho, como são Rubiães, Romarigães, Agualonga, Cossourado e São Martinho de Coura. Por estarem os seus naturais mais distantes da Vila, centro empregador a que raramente tinham acesso e arrastarem consigo, quiçá, por isso mesmo, carências de vária ordem (algumas ditadas por um tecido social digno da Idade Média, traduzido num sistema que subjugava quase todas as famílias – empenhadas em criarem tantas vezes mais de uma dezena de filhos – de uma freguesia em favor de pessoas cujo poder angariado pela posse dos campos da aldeia lhes permitia fazer “gato-sapato” e comandar a seu bel-prazer – não raro a troco de um naco de broa – a necessitava e, aterrorizadamente, dependente mão-de-obra, afinal quase toda a população obrigada a venerar os seus senhores da freguesia), os naturais, como dizia, afogados numa “vampiresca” espécie de agricultura, sujeitos ao ditames traçados pela falta das mais elementares necessidades para um dia-a-dia digno de um ser humano, forçados a dizerem ámen ao, ia a escrever, seu amo, também normalmente impedidos de emigrarem, o que, ao tempo, rumo às longínquas paragens além-oceânicas, lhes era vedado por uma bolsa cheia de… teias-de-aranha e pela inexistência das influências que nunca bafejam o pobre, enfim, as gentes de Rubiães, Romarigães, Agualonga, Cossourado e São Martinho de Coura viraram-se então para Lisboa.
E para lá foram, ajudadas por homens de outras terras vizinhas das suas. Creio, pois, que a localização geográfica daquelas freguesias é um dos motivos que levaram os seus à “grande ponte” rumo a Lisboa. Já desde o século dezanove que existiam na capital portuguesa inúmeros galegos, inicialmente, aguadeiros, mais tarde, donos de tabernas e carvoarias. Ora, dada a proximidade da região de Tuy e de Porriño (naturalidade de muitos deles), “nuestros hermanos” terão começado por procurar e levar para seus empregados rapazes minhotos vizinhos, ávidos de uma nova vida na Lisboa que para eles representava o maior sonho. Eram as décadas de vinte, trinta e quarenta. Não tardaria a seguir uma nova “leva”, chamada por esses rapazes, privilegiando, naturalmente, os seus familiares e os vizinhos da aldeia. Assim, “partia” Rubiães e Cossourado, freguesias vizinha e confinante com o concelho de Valença, este fronteiriço e já “com” carvoarias na cidade.
Por seu turno, eram de Covas, Labruja e Cabração alguns dos primeiros donos e encarregados de carvoarias e tabernas. Para Lisboa terão chamado os garotos vizinhos de São Martinho, Romarigães e Agualonga. E pronto, lá estavam os courenses iniciando o aprendizado no ramo. Empregados, sobretudo de galegos. Alguns rapidamente passaram a encarregados e mesmo a proprietários. Davam provas da sua capacidade e pelos anos de cinquenta e sessenta, já “invadiam” a capital. Transformavam os estabelecimentos em belos restaurantes e cervejarias.
Sempre com um lindo espírito de solidariedade entre todos, forma de mitigar o custo da luta pela sobrevivência em tempos difíceis, desbravado estava o caminho. A tradição criava raízes e não mais pararam de rumar a Lisboa.
Trabalhar em quê? Indústria hoteleira, pois claro; é aí que está um amigo, um familiar… é aí que pode começar a fazer pela vida quem, ainda imberbe, deixa os seus sem qualquer preparação profissional, sem possibilidades de enveredar pelos livros, uma vez que urge ganhar para o sustento próprio. Ainda hoje vão chegando, não para as tabernas (apesar de se manterem algumas, preservando-se assim um pouco da antiga alma alfacinha), mas determinados em projectar cada vez mais alto o prestígio dos nossos restaurantes, cervejarias, cafés, pastelarias e “tutti quanti”.
Escrita a letras de oiro, lingotes de oiro salpicado de suor e temperado na fervura do carácter sofrido do homem bom e generoso, ficará a história, que um dia raiará a lenda, da nossa gente que viu as agruras da vida sugar-lhe o sangue, num tempo em que até as próprias lágrimas eram alimentadas pela secura de um quotidiano mirrado e implacável nos seus desígnios: é a história, são as estórias da História dos velhos conterrâneos, ou antes, dos meninos que não chegaram a ser meninos, dos meninos que antes de serem homens eram já homens pequenos.
Vinham da terra, iludidos pelo fascínio da cidade grande, atraídos pelo mundo de uma Lisboa que não curou saber da sua tenra idade, explorou o seu trabalho como se onze ou doze anos de idade pudessem ser sujeitos ao quase esclavagismo de um emprego precário, nanja ao carinho e à ternura.
Mais tarde, vencidos os obstáculos, para sempre credores do nosso reconhecimento pelo belo exemplo de saberem ultrapassar inenarráveis vicissitudes, alcançado o patamar do justo sucesso empresarial, souberam (sabem!) quão merecido foi o êxito correspondente ao título de “Reis da restauração alfacinha”.
Pelo vosso indomável temperamento, um bem-haja a todos vós, queridos courenses, que soubestes beber e digerir os ensinamentos da vida, desde os dias passados, corpos maltratados, porém, almas vitaminadas, acartando sacos de carvão escadas acima, aviando os copos de “três” das fatais cirroses dos fregueses, engolindo a fome dos chicharros que o patrão não comia, dormindo no divã desengonçado e prantado no cubículo da taberna, tudo em troca de uma remuneração que nunca chegastes a ver e de uma folga que jamais vos concederam!