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QUOTIDIANO

7 de Março de 2018 | José Augusto Pacheco
QUOTIDIANO
Opinião

Depois de um dia em Lisboa, apanhei o avião, pela primeira vez no horário noturno, para S. Paulo. Os oito mil quilómetros que separam as duas cidades foram galgados em nove horas e quarenta minutos.

Alguém disse que “brincar é estado de quem vive vigorosamente em constante transformação”.

E se dentro de nós existe sempre uma criança que gosta de brincar, não posso deixar de olhar para a criança que fui, nos meus tempos de infância em Coura, sempre a brincar.

Como não havia computador, internet, nem videojogos, apenas brinquedos em madeira, e já alguns em plástico, a brincadeira tinha um espaço público e, como não será difícil de adivinhar, o monte de Santa era o palco de todas as brincadeiras.

Nesse mundo de brinquedos, os mais utilizados pelos rapazes eram, sem dúvida, o jogo do pião (cuja moeda de troca era o botão) e o jogo do espeto (jogado com uma lima de ferro, de forma perigosa), devendo o jogo da bola ser entendido como uma brincadeira banal.

Porém, a brincadeira atingia mais perigosidade com o fabrico manual de dois brinquedos, muito apreciados pelos rapazes: o carrinho de rolamentos e a mota de pau.

Com quatro rolamentos, bastante procurados, na beleza das esferas, fazia-se um carrinho e a estrada da Volta da Quinta – assim se chama porque o lugar cresceu à volta da quinta da Barrosa – era o único alcatrão a ser utilizado, mas sempre de olho bem aberto na patrulha da GNR, que, regularmente, um de cado lado da estrada, de arma autoritária colocada no ombro, percorria a pé estradas e caminhos.

A mais desejada era, de facto a moto de pau, construída meticulosamente em madeira, incluindo rodas e parafusos e tudo o que pode ter uma moto daquelas que faziam muito barulho e queimavam gasolina de mistura.

Ter uma mota de pau significava habitar num outro reino de infância, onde os adultos eram imitados e os sonhos voavam livremente para outras paragens.

Ter uma mota de pau era admitir que mundo mudava por completo. Descer uma ladeira, e o caminho que vai do cimo do monte de Santa até à ponte da peideira era o percurso mais usado, mesmo que fosse, também, o mais perigoso, tornava-se num verdadeiro jogo de emoções, indescritíveis para quem não teve ou para quem nunca andou numa dessas motos.

Em terra batida, salpicado de pedras e ladeado pelo tojo, o caminho da moto de pau abria-se em duas margens de enorme liberdade, numa brincadeira que reunia um magote de rapazes, mesmo que as feridas abertas em corpos débeis e franzinos fossem medalhas que não podiam ser exibidas perante os pais.

Sofrer era algo que se aprendia como resultado direto de brincadeiras ousadas, aquelas que faziam parte de um imaginário que era preciso reinventar em cada dia que se tornava especial.

Andar a velocidades loucas, cair e levantar fazia parte da rotina de um jogo que não tinha regras, a não ser a da solidariedade entre rapazes, pois quem tinha uma moto de pau sentia a obrigação de partilhá-la com os outros.

Uma mota de pau era um brinquedo coletivo, de desgaste rápido, tal era a intensidade da sua utilização.

 

 

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