Na parte final da crónica anterior, falhou-me na escrita, mas não na lógica da ideia, a palavra “avós”, pelo que regresso aos sábios avós analfabetos de José Saramago.
Para se saber desses momentos únicos de infância, basta ler “As Pequenas Memórias” ou, como explica o escritor, “as memórias pequenas de quando fui pequeno, simplesmente”, onde o rapaz da cidade e do campo entra em sucessivas descobertas, pelas ruas de Lisboa e pelas terra do Ribatejo, à qual permaneceu ligado através dos seus avós paternos, já que com os avós maternos não havia empatia (“existir, existiam, mas não funcionavam”).
Assim, Azinhaga, e não Lisboa, foi o porto de abrigo para os seus sonhos de rapaz que descobre na infância que a crueldade não tem limites, sobretudo pelos seus precoces ofícios mais de pescador que de caçador, vivendo a plenitude de um tempo que parecia ser “feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis”.
Se não teve a intenção de fazer a árvore genealógica da família, em cujo tronco estaria o seu avô, Saramago conta-se a si mesmo, em registo autobiográfico, não deixando de fora nem traquinices, nem amores, nem emoções, pois tudo narra na vida profunda das suas palavras, sem nunca esquecer o aguilhão político, como nesta passagem:
“Hitler, Mussolini e Salazar eram colheres do mesmo pau, primos da mesma família, iguais na mão de ferro, só diferentes na espessura do veludo e no modo de apertar”.
Porém, é da “pobre e rústica aldeia” do Ribatejo, moldada por sucessivas gerações, tão fortes como as raízes das oliveiras que dão “luz às candeias e sabor ao caldo”, que Saramago fala abundantemente, porque aí viveram os seus avós paternos, “Josefa e Jerónimo se chamavam”, “analfabetos um e outro, como já foi dito e redito”.
E fala ainda mais do avô, olhando-o no fim da viagem:
“Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de privações, de ignorância. E, no entanto, é um homem sábio, calado, que só abre a boca para dizer o indispensável”.
E acrescenta ainda:
“É um homem como tantos outros nesta terra, neste mundo, talvez um Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto”.
Mais atrás viaja a sua avó, na “serenidade” dos seus “noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida”, cujas últimas palavras são:
“O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer”.