Nasci num dos meses mais frios e húmidos de Santa, em pleno inverno de más caras, pelas três e meia da madrugada, em dia adiantado de janeiro e no primeiro dia de lua nova.
Era sexta-feira. E a parteira que me ajudou a ver o mundo estava do lado de lá do rio, no lugar de Afe, em Moselos, tendo sido acordada pelas minhas irmãs Maria e Rosa, de 14 e 11 anos, respetivamente, a quem minha mãe disse, de voz vergada às terríveis dores, “Ide chamar a parteira, que venha rápido.”
E veio, porque, indiferente ao silêncio ruidoso do rio, criando murmúrios de eterno sofrimento, pressentiu os passos leves de duas meninas, que não precisaram de bater à porta, apenas se sentiam abafadas pelo medo saído do mais escuro breu de uma noite despida de estrelas e luz.
O menino estava pronto para nascer. Dera a volta, certamente sem interferir com o cordão umbilical, que o segurava ao útero, nove meses passados sem uma ecografia, sem análises, sem consultas de apoio, numa das mais perigosas aventuras do sere humano.
Nascer era o maior perigo tanto para a criança, como para a mãe. Se tudo desse certo, seria a magia da vida, o hino à fertilidade das gerações, que vão e vêm no pestanejar do tempo, já que, como escreveu um romancista, a existência humana “é uma fenda de luz fraca entre duas eternidades de negrura ideal”.
E tudo deu certo. A parteira chegou, munida de ferramentas às quais tinha um enorme horror, e usou somente a sabedoria que tinha em suas mãos, aliada à força das suas palavras de psicóloga, habituada aos gritos da vida, para puxar, na leveza de uma possante energia, o menino que já tinha dito que queria nascer.
O meu irmão Manuel dormia profundamente. As minhas irmãs assistiram, sem medo, e foram as primeiras a pegar em mim, pois a parteira já dava sinais de cansaço. A minha mãe beijou-me ternamente, depois do meu berro ter enchido a casa por inteiro e da água tépida ter limpado as marcas da mais aconchegada morada que temos, da qual não damos conta e à qual não atribuímos idade.
Passadas duas semanas, já corria o mês de fevereiro, fui batizado na velhinha igreja de Santa Maria de Paredes, numa pia de água benta quase gelada, que me acordou e obrigou a abrir os olhos débeis que ainda não enxergavam nada do que pudesse ser visto.