Em tempos idos, mas não muito distantes, porque eu próprio testemunhei esse modo de agir das pessoas do lugar de Santa, como tantos outros o recordarão, era comum, pelo domingo de manhã, realizar uma reunião para efetuar um sorteio, ou seja, lançar as sortes.
Estava em jogo a distribuição equitativa dos recursos comuns às pessoas de uma comunidade agrícola, entregando-se-lhes uma dada parcela do monte para roçar o tojo, tão essencial para a fertilização das terras.
Apesar de me recordar com a nitidez de infância dessa partilha, trata-se de uma prática ancestral, referida, por exemplo, na Bíblia, e traduzindo a divisão da terra em porções, como herança divina, na qual se incluía o sacerdócio para os que fossem bafejados pelo chamamento divino.
A sorte ou a herança ou o quinhão das terras com que as tribos foram contempladas, conforme se lê na referida fonte, teve efeito direto na formação da palavra Clero, que provém do grego, com a grafia Kléros, significando sorteio, evoluindo o termo, no mundo cristão, no sentido de pessoas incumbidas do culto divino.
Pela origem etimológica, o sorteio de terras tinha a mesma credibilidade que o clero tem, não se duvidando nem do processo em si, nem dos seus efeitos junto das pessoas, já que há sempre os que consideram que as sortes podem não ser totalmente iguais, como se pode verificar nas partilhas familiares realizadas na base da confiança mútua.
No caso que invoquei inicialmente, estava em jogo a divisão equitativa do monte de Santa em partes iguais, cabendo às famílias roçar, no prazo determinado, o tojo tão essencial às dinâmicas agrícolas.
Por isso, não me lembro de quezílias que tenham surgido, mesmo que houvesse uma ou outra medição menos justa ou uma ou outra parte do monte menos acessível.
Roçar o tojo nas ladeiras do monte exigia mais cuidados, não fosse alguém resvalar perigosamente para o rio Coura, que ali corre num extenso penedio.
Com efeito, era difícil ocorrer um fogo no monte, já que era tratado como compartimento de uma casa, fosse pelo tojo roçado todos os anos ou pelo efeito de ovelhas e cabras “sapadoras”, com a função de limpar o monte de forma meticulosa, sob o olhar distraídos dos rapazes que se entretinham a jogar à bola.
O mesmo se passava com as bouças, fonte de muitos recursos, quer através da lenha, retirada de modo programado e pausado no tempo, que servia de energia natural, quer por intermédio do corte de madeira, que sempre ajudava ao equilíbrio do orçamento familiar.
Ou seja, lançar as sortes relativamente ao monte de Santa foi um ato de confiança de muitas gerações, assim como tiveram um “acordo de sangue”, uma tradição timorense que pode ser citada a esse propósito, para a divisão ordeira e inquestionável da água de rega dos campos.