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22 de Setembro de 2020 | José Augusto Pacheco
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Opinião

Andara por África, de arma em punho, pela província de Tete, muitos quilómetros depois de Lourenço Marques, para norte. Decorriam os anos finais da ditadura do Estado Novo, de um país ainda teimosamente colonial, como se cada colónia fosse uma propriedade privada, legitimamente nas mãos dos portugueses. Este é um passado que não esquecemos, nunca mais, seja ou não abordado nas escolas, embora o colonialismo, numa versão bastante benevolente, faça parte dos manuais escolares, e com o qual somos confrontados, de pé para a mão, sem contarmos. Estava eu por terras do Brasil, numa escola quilombola, cujos alunos e pais são descendentes de escravos, de péssima memória para a humanidade. Depois de muitas intervenções, alguém, antes de eu ainda ter falado, como convidado, num evento que acontecia em plena Amazónia, me disse que teria de pedir desculpa pelo negócio da escravatura que cruzou e crucificou vidas de pessoas por terras de África e do Brasil. Reagi, óbvia e serenamente, não com o passado, que também nos pertence, mas com o presente e o futuro, concretizado num fraterno abraço (pouco antes do confinamento pandémico). A minha arma é a palavra e só essa é capaz de construir um diálogo sem culpas, sem expiação de pecados coloniais, que nos pertencem, enquanto portugueses, queiramos ou não.

Mas a arma desse soldado de Coura, retirado do avental das suas duas tias, na idade em que mais dele precisavam, tinha balas e disparava, muitas vezes em defesa, outras para sinalizar caminhos e ainda outras para marcar presença.  O que se passou no palco da guerra colonial é algo que ficou na memória desses soldados, sendo um tema sobre o qual não é conveniente falar. Há um certo tabu em relação a esse nosso sofrido passado.  O que me disse esse soldado, destemido em cada campanha de mato, assim se designavam os contactos, porque batalhas não existiam, é que jamais tivera medo no seu papel de militar, por longos meses, primeiro na recruta, depois pela mobilização para África. Sim, o medo ficara em casa. E tinha sido essa atitude que lhe permitiu sobreviver.

Regressado a casa e aos braços dos seus, olhou diretamente para esse medo que ali ficara, adormecido, e com ele fez o dia de muitos dias. O seu regresso ressuscitou-o por completo. Todo o barulho era uma ameaça e cada insignificante sinal fora da normalidade era uma metralhadora vomitando estrondosas balas. Vivia o período traumático da guerra colonial, sem ajuda psicológica, sem uma atençãozita da máquina de guerra do Ultramar. Os nossos soldados regressavam ao país, depois de terem estado por dentro da guerra, como se tivessem sido  meros turistas, nos muitos meses de mobilização forçada, da qual só escapavam alguns, por resistência e fuga para o estrangeiro, ou por uma “divina” incapacitação, já que os favores dos senhores de lá de cima da hierarquia também existiam. Sem esse apoio psicológico foi vivendo e ultrapassando os seus medos. Um deles estava perto de si. Não sendo o sacristão da paróquia, tinha o hábito de subir diariamente a torre sineira, para dar as badaladas vespertinas, muitas delas ecoando já pela noite escura e densa de Formariz. Sentia-se bem nessa tarefa que lhe transportava para bem longe os seus traumas de guerra. Quem badala o sino afugenta os medos, assim dizia a quem lhe perguntava por que razão tinha assumido essa obrigação. E badalava com a energia pessoal e familiar que lhe dera o salvo-conduto para regressar a casa pelos seus próprios pés. Estava ali de corpo inteiro. Gostava do que fazia, sentindo em cada tardio pôr de sol de verão a nostalgia do horizonte africano, pintado em cores de fogo incandescente que iluminava, amenamente, o céu sem nuvens, aberto a mais uma noite de sons tão diversos e sonolentos. Da torre sineira olhava a noite moçambicana como se lá estivesse, sentindo-se bem dentro desse espaço que tão positivamente o captara, como fármaco que se toma para debelar uma qualquer fraqueza.

Não queria de modo algum desistir desse novo e prazenteiro ofício. Fazia-o como ninguém, porque só ele, nos seus silêncios de uma África profunda, sabia o que sentia quando pensava no seu lugar, uma covinha especial da natureza. Repentinamente, disse que não subia mais à branca torre sineira. Que se passara? Nada de especial. Perdera o medo, esse terrível medo que lhe pesava na alma desde que regressara do Ultramar. Não precisava mais do som das badaladas vespertinas da sua aldeia. Seus ouvidos ávidos de África, vazios dos sons de Coura, já não existiam. Tinha agora o seu mundo familiar reconstruído. Desaparecera o medo, sentia-se um soldado da amizade que só ele sabia distribuir em afetos inesquecíveis. Nunilo, da Covinha, pois claro!

 

( O autor escreve de acordo

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