Mário Montenegro, poeta e romancista que tão cedo nos deixou, tinha na alma e no esplendor da sua escrita o génio dos grandes artistas. Que pena a sua obra não ter sido divulgada como merecia.
Em vida – e ainda hoje, com honrosíssimas excepções – poucos falaram do seu talento, houve mesmo quem o quisesse arrumar na prateleira onde se arrumam os nascituros, que é como quem diz, os artistas que ainda hão-de nascer, sobre os quais nem vale a pena arriscarmos uma opinião que seja.
Depois de partir, ficou a obra – e ficou ainda alguma indiferença; sobretudo de quem não se dignou sequer ler os seus livros – como poderia alguém que vivia entre nós, que era gente da nossa gente, fazer os letrados cá do burgo vencerem o preconceito!
Tânia, uma das filhas do poeta, terá sido a maior guardiã do acervo de Mário Montenegro. Professora na Universidade do Minho, mulher da cultura, herdou do Pai o gosto pelas artes e a paixão pelo Lugar de Antas, o courense e doce torrão onde o autor escreveu grande parte da sua obra.
Quem melhor, pois, que Tânia de Menezes Montenegro para conversar sobre o Mário, o poeta, o romancista, o interventor político, o democrata, o homem permanentemente preocupado com o bem-estar das gentes courenses, a sua gente, como não se cansava de dizer.
É exactamente pelo cidadão Mário Montenegro que gostaria de começar. Sei que a Tânia tem um conhecimento profundo das preocupações sociais e da luta que o seu Pai travou desde sempre pela melhoria das condições de vida dos seus concidadãos…
A ternura e a paciência com que sempre acolheu todos os que o procuravam para uma conversa, uma opinião, um conselho, um pedido de ajuda, são símbolos das preocupações sociais que o meu Pai sempre teve. Tenho dezenas de rascunhos que, sobrevivendo ao tempo, ilustram de forma bem viva essa faceta.
São requerimentos e cartas para atribuição de reformas e complementos de solidariedade pela segurança social francesa e portuguesa, pedidos de ajuda a diversas entidades para a reabilitação de habitações, atribuição de subsídios e aquisição de material ortopédico para pessoas doentes e carenciadas… Situações que a “assistência social” simplesmente não via e, para as quais, muitas vezes, o meu Pai recorria à Provedoria de Justiça para obter uma solução. São tantas as histórias, com nomes e rostos… e lembro-me bem de muitas delas.
As pessoas chegavam a fazer fila em nossa casa para falar com o meu Pai, e vinham de perto e de longe, porque tinham ouvido dizer que o “Sr. Melo” as podia ajudar. Era comovente a forma como algumas pessoas pensavam que o meu Pai as podia ajudar a resolver tudo…
A integridade, o sentido de justiça, a generosidade, a compaixão e a ternura do olhar e dos gestos, traçam o retrato do homem genuinamente bom que o meu Pai era.
Antes ainda de falarmos da obra poética, confesso que gostei bastante da “Crónica de Sombras”, por alguns considerado o ponto mais alto do seu trabalho literário. Apresentado sob a forma de crónica romanceada, neste livro surge-nos um Mário Montenegro dono de um sentido de humor superior e uma capacidade narrativa de igual nível, tornando uma história simples, de uma das mais antigas famílias de que há história em Portugal, numa obra vibrante e rica. Mais de que da família, esta é a história da casa. A história das gentes e dos espíritos, das sombras que habitam as entranhas da casa que pertenceu e pertence aos Almaviva de Alpendurada Cavaterra, assim nos é descrita a obra que nos mostra um autor detentor de uma linguagem crua e bela, como que, à semelhança de Aquilino, fazendo reviver os dizeres do rico património da Língua Portuguesa, a oralidade rural, hoje em dia vilipendiada de modo tacanho. Deste seu esforço, de resultado feliz e saboroso, vive igualmente a qualidade da obra, não hesitando Mário Montenegro em surpreender o leitor, quase diria, chocá-lo, aqui e ali. Gostava de saber se a Tânia ficou surpreendida pela feliz incursão de seu Pai, já nos anos finais da sua curta vida, pelos meandros da prosa.
O romance “Crónica de Sombras” publicado em 2000 começou a esboçar-se cerca de 10 a 12 anos antes da sua edição. O meu Pai foi escrevendo textos com histórias ligadas ao Solar dos Almaviva de Alpendurada Cavaterra que ia partilhando comigo, já na minha adolescência. Lia-me textos, eu lia os textos, e riamos muito… e essa partilha permitiu-me conhecer muito vocabulário antigo, rural, muito belo e que já quase ninguém conhece.
“Que tristeza esta luz, esta sombra,/ qualquer coisa, talvez não sei o quê!/ Esqueci-me, meu Deus, ou não me lembro,/ era um rosto que foi, e já não é./ Como o vento, como a brisa, como tudo/ o que passa, já passou./ Foi presença constante, luz efémera,/ nada ficou.” («Como o vento, como a brisa», de “Entre pássaro e homem”).
Um dos livros de que mais gosto é o «Entre pássaro e homem». Confissão feita, peço-lhe que me confidencie qual o título que mais a toca ainda hoje; que mais a faz recuar ao colo do Pai e a transporta ao mundo do poeta.
Seleccionar um título é para mim difícil, pois é longa a lista de poemas de eu que gosto muito. Passo a enumerar alguns poemas que me transportam ao universo do poeta: «Pedra a pedra», «É no friso dos teus olhos», «Litoral» e «Outonal», de “Este Chão Estas Palavras” (1986); «À Memoria de José Afonso», «Longitude», «Infinito», «In Memoriam» e «Silêncio», de “Entre Pássaro e Homem” (1993); «Silêncio», «Entreacto», «Coisas simples», «Ritual ameno», «Os cravos», «Instante» e «Canto Rouco», de ”Dos Olhos ao Coração” (2005).
Os poemas que mais me fazem recuar ao colo do Pai são «Saudades» e «Melodia».
«Saudades», pela ternura que o texto em si mesmo encerra, essa mesma ternura que sempre inundou o olhar e o abraço do meu Pai. “Com que saudades relembro os olhos de menina, o rosto enrugado, a ternura dos dedos! Todos os caminhos iam a sua casa, além da casa onde nasci. Chamava-se tia Olívia, a ele tio António, tio António do Calor (…) E tinha ela, sempre, para me dar, qualquer coisa como um beijo, o aroma dos figos, o sabor dos morangos (…). Com sessenta anos, eu apenas com seis, chamava-me seu menino, ou então seu namorado, e o tio António sorria, com a ternura nos olhos, porque eu era o seu menino, porque às vezes me beijava e me levava com ele, e me cortava o cabelo, com caleirinhas abertas que conduziam ao céu (…)” («Saudades», de “Entre Pássaro e Homem”).
«Melodia», simboliza a felicidade que partilhámos enquanto, juntos, povoámos o nosso Lugar; mas é também a memória viva do meu Pai. “Fevereiro, meio dia,/ primavera anunciada./ Com voz doce, magoada,/ no medronheiro/ um rouxinol canta à porfia./ E é tão bela, a melodia!/ E é tão bela, a melodia!” («Melodia», de ”Dos Olhos ao Coração”).
Criada e maturada no seu castelo de sonhos e desilusões, na sua Antas natal, no seu mundo onde a utopia era suficientemente forte para derrubar as evidências trágicas do quotidiano, imagino que sinta a obra do autor e o próprio Mário em cada esquina do lugar onde continua a viver, em cada canto da casa…
Desde sempre (mesmo antes da sua partida física), o meu Pai povoou cada canto da casa, nos livros e objectos, no jardim, nas árvores e flores que plantou, no pequeno ninho, que escondido entre as heras da varanda da entrada da casa ainda hoje sobrevive, nos pássaros que alegremente cantam…
Quando há cerca de um ano iniciei um trabalho mais profundo de análise, selecção e catalogação da vasta documentação deixada pelo meu Pai, revivi momentos únicos da minha infância (e da minha vida), ouvi o meu Pai discursar e declamar poesia, conversar com as pessoas da aldeia e com as crianças (as suas crianças!), e até um suave cheiro ao fumo do seu cigarro ou o perfume que ele usava inundaram as muitas horas que passei (e ainda passo) à volta desse espólio. E, mais do que nunca, fiquei com a certeza de que o seu belo Espírito paira onde, afinal, sempre esteve: a sua casa, o seu jardim, o seu Lugar!
Consegue apontar um momento na sua vida em que percebeu que tinha um Pai diferente; em que viu no Pai um poeta, um artista, alguém que sentia o mundo de modo muito particular?
Talvez desde sempre! São muito antigas as memórias que tenho de um Pai muito carinhoso, que brincava connosco (e com os nossos primos, os primos dos primos, e todas as crianças que aparecessem!), que fabricava brinquedos, que contava histórias, que nos lia poesia em noites quentes de Verão, que falava dos segredos das árvores, das flores, dos pássaros e dos outros animais… Só alguém muito especial poderia ser assim!
A verdadeira consciência, porém, talvez se tenha dado aí pelos meus 8 a 10 anos quando percebi que os pais dos outros meninos não eram iguais ao meu, e que o meu Pai nunca deixava indiferente quem com ele se cruzava.
Considera que a obra de Mário Montenegro tem sido objecto de um justo reconhecimento por parte de todos nós – aqueles a quem incumbe preservar e divulgar o talento dos que, como disse Camões, se vão da lei da morte libertando?
Seria desonesto da minha parte dizer-lhe que Mário Montenegro tem sido lembrado, lido e divulgado tal como eu gostaria. Mas seria também de uma funda ingratidão eu não reconhecer os apoios que os sucessivos Executivos de Paredes de Coura foram dando, quer na edição de dois livros do meu Pai, quer ao nível de algumas iniciativas de homenagem ao homem e à obra.
Por outro lado, há pessoas que se cruzaram com o meu Pai e que, para além da amizade, ajudaram de forma indelével ao reconhecimento da sua obra. Falo dos Escritores Mário Cláudio e José Manuel Mendes e dos artistas plásticos Henrique Silva, Tiago Manuel e José Rodrigues, que contribuíram com os prefácios e desenhos/pintura para as capas dos livros. Não posso esquecer José Emílio-Nelson, Maria Emília Corte Real, Ramiro Teixeira, Francisco Martins e Domingos Lobo, que através de textos de crítica literária promoveram a obra de Mário Montenegro.
Há ainda o papel da imprensa local, nomeadamente dos Jornais “O Coura” e “Notícias de Coura”, e das pessoas que aí escrevam ao longo dos anos. Destaco Antonino Cacho, Jofre Lima Monteiro Alves, e claro, com grande relevo, o Manuel Tinoco.
Por fim, quero salientar o escritor Mário Cláudio. A leitura dos textos (poemas e prosa) e as sugestões que fez a Mário Montenegro antes da publicação dos livros, a contribuição com prefácios para três livros de poesia, a disponibilidade e presença nas sessões de apresentação dos livros e nos momentos de homenagem, tornam incomensurável o seu contributo para o reconhecimento e divulgação da obra de Mário Montenegro. É justamente por sua iniciativa que a exposição “O Coração das Coisas – Mário Montenegro, um Poeta em Paredes de Coura” tem lugar no Centro Mário Cláudio.