Quando minha filha Mariana me falou no assunto eu hesitei. Sabia perfeitamente que meu ser iria acordar emoções tão bem guardadas lá no fundo, bem lá no fundo, adormecidas há imenso tempo. Contudo, perante sua insistência, com o argumento de que minha ajuda seria útil, acabei por concordar em dar uma entrevista à sua amiga Andreia que acabava de se formar na Universidade em Londres.
Conhecia bem a Andreia, amiga dos meus filhos e frequentadora de nossa casa havia anos, tinham estudado juntas na escola do Padrão da Légua. Andreia era uma menina simpática, escondendo sua simplicidade e humildade, envergando sempre roupa preta e calçando botas pretas, imutavelmente, caprichos que nunca entendi nem tentei entender por não me dizer respeito. Acabara de se formar em Gestão, em Londres, e decidira que o título do mestrado seria a Guerra Colonial em homenagem ao seu pai perdido havia quatro anos atrás, também ele ex-combatente na Guiné. E, como o tema me era tão caro, e desejoso, ao mesmo tempo, em ajudá-la, concordei em dar a entrevista. Assim, dois dias depois, pontualmente às nove horas, como combinado, ela chegou. Sem perda de tempo sentámo-nos sossegadamente no sofá, a seguir pousou o gravador ao lado e nossa conversa começou. Depois de me apresentar dizendo o nome, idade e morada, esboçou um aceno com a cabeça, olhou o bloco de apontamentos e a primeira pergunta brotou. Minha viagem aos infernos começava.
– Esteve a lutar em Moçambique. O que foi a guerra para si?
Uma guerra é sempre uma guerra. Existe sempre o medo de morrer, num segundo uma mina ou uma emboscada poderia travar nosso caminho, e o nosso destino podia acabar num pestanejar de olhos. Não gostei, ninguém gosta de guerra, seja ela qual for, é triste e repleta de momentos que nos marcam para o resto da vida.
Andreia olhava para mim atenta a cada palavra minha. E consultando de novo o bloco:
– Enfrentou emboscadas e minas. Que sentiu ao ver amigos seus feridos e até mortos?
De repente a sala ficou quente. A pergunta bateu forte. Estremeci ligeiramente. Tive vontade em abrir a persiana para que a frescura de Junho entrasse na sala e me insuflasse alguma tranquilidade. Precisava de ar puro. Cruzei a perna, descruzei logo a seguir, recostei-me melhor no sofá na vã tentativa de ganhar posição para as dores que iam despontando. Vínhamos da Rodésia numa dessas imensas colunas, dando protecção aos carros civis e camiões TIR que seguiam para o Mali. De repente dois tiros surdos vindos do meio do capim e ele tombou para a picada já morto. Ele, o radio telegrafista Castro, um gajo pacato e simples e discreto, completamente deslocado da guerra que era obrigado a viver a todos os instantes. Incrédulos alguns choravam, outros levaram as mãos ao rosto abalados pelo drama acabado de acontecer. E eu olhei os céus em busca de uma explicação… E na picada dei comigo a gritar uma lágrima infinda, a vociferar um brado que me varreu até aos dias de hoje e não se extingue nunca, nunca… Vai comigo até ao fim!
– Sofreu muito na solidão?
A solidão era nosso fadário, como o stress, como as patrulhas, como a saudade. Solidão era o vazio de todos os segundos, apesar de estar sempre rodeado por cento e cinquenta soldados, como eu, que formavam a Companhia. Contudo, misteriosamente, no mato, no silêncio mágico da selva, um monte de capim como colchão a amaciar-me o corpo, e fitando as estrelas, eu não me sentia só! Lá, animais ao longe soltando seus urros ou choro, a G3 ao lado, sempre bem encostada a mim, o bornal convertido em travesseiro, desprendia-se da noite uma calma que me possuía e tornava minhas dores muito mais macias. Nesses momentos a alma enchia-se de sonhos… E então desabafava com as estrelas. Se sofri? Oh! Meu Deus, como falar de dores em segundos apenas para uma coisa insignificante e fria como um gravador? Como vai ele entender-me?
Comecei a transpirar. Que calor aquele! Seria da luz ou do ambiente? Mas a pergunta seguinte da Andreia atiçou ainda mais a fogueira onde eu me atolava cada vez mais.
– Matou alguma vez?
Saltei do sofá. Matei, sim. Várias vezes, atacado por uma fúria incontrolável rebentada em mim tão de súbito sem nunca precisar de que parte de meu ser ela provinha. Matei – mas sem disparar um só tiro! Matei possuído por raivas, revoltas, angústias e sei lá mais quê! A cada segundo que passava o calor ia-me asfixiando cada vez mais. O ar demorava a chegar aos pulmões. E lá no fundo de mim mesmo (tinha a certeza que iria ser assim!) dores que aos poucos foram despertando e me atropelavam sem compaixão deixando-me enormemente aflito dentro do meu próprio labirinto de recordações. Pela primeira vez apeteceu-me pedir para que a entrevista acabasse. Não queria acordar os meus demónios, não queria, não queria. Uma tristeza sem nome dominava-me por completo. O corpo pesava mais de duzentos quilos. Limpei a testa com um lenço de papel.
Sentia a garganta seca e a alma cheia de memórias e fantasmas. A pergunta seguinte enterrou-me, sem piedade alguma, ainda mais fundo nos meus infernos:
– Alguma vez teve medo?
Cerrei os punhos para reprimir a vontade em sair da sala e acabar com tudo. Não me sentia bem. Parecia que ia morrer asfixiado, a respiração estava muito desritmada, e havia em todo meu ser um desconforto inexplicável. Um aperto na barriga sem definição, uma tristeza proveniente das trévoas da memória, não sei, qualquer coisa nunca sentida nos trinta e cinco anos após meu regresso de Moçambique, e que nessa noite de Junho, apesar de tanto tempo transcorrido, ainda dava cabo de mim! Olhei de relance para a entrevistadora para ver sua reacção, e vi que ela mantinha-se atenta a cada letrinha pronunciada como se o sucesso do seu mestrado dependesse da minha confissão! Minha cabeça rodava qual moto no poço da morte, atormentada por um pensamento desconexo que batia nela qual martelo implacável e cínico. Queria fugir, fugir. Não queria recordar nem sentir!
– A guerra causou muitas mortes e deixou muitas famílias de luto. Terá valido a pena todo esse sacrifício?
Inadvertidamente fechei os olhos. Queria adormecer sem perguntas, e sem fantasmas, e sem dores. Aliviado ouvi a Andreia soltar um breve “já acabou” ao mesmo tempo que se abria num sorriso apaziguador.
– Muito obrigada. E peço desculpa por fazer-lhe reviver esse tempo… — aproximou-se de mim e, como reconforto, deu-me um beijo desejando-me uma boa noite. Pegou no gravador e saiu, pausadamente, no seu andar de menina sossegada.
Fiquei só. Só mas atormentado, remoendo como um vulcão as dores que a guerra inculcou em mim. Não sei quanto tempo permaneci sentado de olhos fechados, a cabeça rodopiando. Mas foi muito tempo. No peito corria uma dor esquisita e disforme que me diminuía assustadoramente. Da testa desprendia-se um suor frio. O coração batia descompassado. O corpo pesava como chumbo. E na alma uma dor antiga, muito antiga e impagável…