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Quotidianos

6 de Outubro de 2015 | José Augusto Pacheco
Quotidianos
Opinião

Meu pai, Arnaldo, tinha por hábito contar estórias em família, sobretudo nas noites que que se tornavam mais claras pela luz ondulante da lareira.

Muitas lhe ouvi, lamentando-me não as ter gravado em áudio ou em vídeo (que já começava a aparecer em dois formatos, em câmaras grandes que mais pareciam de repórteres televisivos). Sei o tema de muitas dessas estórias, mas não tenho as palavras para as unir com consistência.

Há uma delas de que não me esqueci, embora não consiga passar para o texto a habilidade de narrador exímio que meu pai tinha. Como não tínhamos avôs vivos, e hoje ganha crédito nos estudos de antropologia a “hipótese avó” na construção do núcleo familiar, atribuindo-se-lhe o papel de figura central que tece com afeto a linha geracional e molda crenças, tradições e costumes, meu pai era, de facto, o centro da família nessa construção de memórias afetivas.

Um rapaz, ainda na adolescência inicial, tinha a profissão de pastor.

Gostava dos montes, da liberdade do sol e da chuva, e gostava que o seu trabalho fosse devidamente reconhecido pelo patrão, proprietário de terras sem fim.

Mas este pastor era muito especial e resolveu fazer um teste para escolher o patrão para quem deveria trabalhar. Era a prova da sopa.

Quando lhe serviam a sopa, a ele e a muitos mais serviçais agrícolas, sempre se queixava que estava quente, saída a ferver do pote escuro que ocupava parte da lareira. E em voz alta dizia:

– Patrão, a sopa está a ferver.

O primeiro patrão, para quem trabalhou, respondeu-lhe:

– Deita-lhe água fria.

Despediu-se e foi em busca de um novo patrão, que lhe respondeu do seguinte modo à mesma pergunta:

– Sopra-lhe, que tens tempo.

Voltou a desempregar-se e levou semanas a encontrar um novo patrão, o terceiro, a quem colocou a pergunta anterior.

O patrão franziu o sobrolho, hesitou, e disse-lhe com sinceridade:

– Deita-lhe pão. E assim o jovem pastor escolheu o patrão, a quem serviu por longos anos e onde se fez velho, comendo diariamente a sopa com pão.

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