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Quotidianos

15 de Setembro de 2015 | José Augusto Pacheco
Quotidianos
Opinião

Era um homem pacato. Sempre bem-humorado, de sorriso malandro, capaz de abrir os lábios dos mais tristes.


Contava anedotas. Muitas. Umas em cima das outras. Algumas delas eram picantes, mais no sentido e não tanto nas palavras.

Tinha uma profissão. Rara. Não gostava de trabalhar para os outros.

Gostava da liberdade e sonhava voar, mas nunca o tentara, pois sabia que teria o destino fatal de Ícaro.

Nascera num lugar sobranceiro à Vila.

Os primeiros passos foram dados defronte da Capela do Espírito Santo.

Aprendeu a correr, de forma veloz.

Era o melhor dos melhores nas corridas que se faziam distraidamente entre a garotada. Entrou para a escola. Dela logo saiu, poucos meses depois, cansado da monotonia e incapaz de aprender outro ofício que não fosse o que mantinha em sonho desde que se conhecera.

Sabia o que queria ser. Sempre o desejara de modo convicto.

À medida que ajudava nas tarefas agrícolas, de sobrevivência familiar, mais enraizava em si a necessidade de escolher essa profissão.

Sempre que saía de casa, pois o espaço familiar não tinha janelas, sendo um aglomerado de duas portas exteriores e de uma chaminé, de onde saía o fumo da lenha que diariamente ardia na lareira de pedras toscas, olhava para o céu e seguia o voo das aves.

Conhecia de cor todas as aves que existiam em Coura, desde as mais banais até às mais raras, sabendo, também, quando chegavam e partiam as aves migratórias.

Depois de ter aprendido o ofício da observação, e de ter aprendido a contar, utilizando as aves como instrumento didático, especializou-se na artimanha de captura dos pássaros mais exóticos, tendo algum desprezo pelos pardais e pelos melros.

Gostava da cor e do canto dos canários. Fazia questão de o dizer, mostrando o improvisado esconderijo que fizera junto ao casebre onde vivia.

Um dia olhou com dó para os canários adoentados. Sem sol, morriam de tristeza. Tinham deixado de cantar.

Não sabia o que fazer. Soltá-los ou vendê-los seria uma possível solução. Mas não. Estava disposto a mantê-los, mas precisava de devolver-lhes a vida alegre de aves canoras.

Decidiu mudar de profissão. Ensinou a outros rapazes do lugar a arte de captura e começou a fazer para cada uma das aves, que viviam ali desumanamente, uma verdadeira casa.

Tornou-se gaioleiro. Já tinha uma profissão.

Um dia, porque teve de responder perante um juiz por outras coisas que nesta crónica não interessam, ficou embasbacado perante a pergunta sonolenta do juiz.

– Qual é a sua profissão?

Não soube responder.

Gesticulou o que sabia fazer, mas era incapaz de encontrar a palavra certa.

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