Meu pai, Arnaldo, tinha por hábito contar estórias em família, sobretudo nas noites que que se tornavam mais claras pela luz ondulante da lareira.
Muitas lhe ouvi, lamentando-me não as ter gravado em áudio ou em vídeo (que já começava a aparecer em dois formatos, em câmaras grandes que mais pareciam de repórteres televisivos). Sei o tema de muitas dessas estórias, mas não tenho as palavras para as unir com consistência.
Há uma delas de que não me esqueci, embora não consiga passar para o texto a habilidade de narrador exímio que meu pai tinha. Como não tínhamos avôs vivos, e hoje ganha crédito nos estudos de antropologia a “hipótese avó” na construção do núcleo familiar, atribuindo-se-lhe o papel de figura central que tece com afeto a linha geracional e molda crenças, tradições e costumes, meu pai era, de facto, o centro da família nessa construção de memórias afetivas.
Um rapaz, ainda na adolescência inicial, tinha a profissão de pastor.
Gostava dos montes, da liberdade do sol e da chuva, e gostava que o seu trabalho fosse devidamente reconhecido pelo patrão, proprietário de terras sem fim.
Mas este pastor era muito especial e resolveu fazer um teste para escolher o patrão para quem deveria trabalhar. Era a prova da sopa.
Quando lhe serviam a sopa, a ele e a muitos mais serviçais agrícolas, sempre se queixava que estava quente, saída a ferver do pote escuro que ocupava parte da lareira. E em voz alta dizia:
– Patrão, a sopa está a ferver.
O primeiro patrão, para quem trabalhou, respondeu-lhe:
– Deita-lhe água fria.
Despediu-se e foi em busca de um novo patrão, que lhe respondeu do seguinte modo à mesma pergunta:
– Sopra-lhe, que tens tempo.
Voltou a desempregar-se e levou semanas a encontrar um novo patrão, o terceiro, a quem colocou a pergunta anterior.
O patrão franziu o sobrolho, hesitou, e disse-lhe com sinceridade:
– Deita-lhe pão. E assim o jovem pastor escolheu o patrão, a quem serviu por longos anos e onde se fez velho, comendo diariamente a sopa com pão.