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13 de Fevereiro de 2024 | José Augusto Pacheco
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Opinião

É muito difícil voltarmos às memórias de infância, tal como elas são, de carne e osso, a não ser pelas ideias vagas com que ficámos e que jamais nos abandonam.

Somos, no presente, que sempre desejamos que se alongue o mais possível, sem fronteiras definitivas no tempo, uma projeção do passado, como se este nos guiasse permanentemente, naquilo que recordamos, de modo deliberado ou nos sonhos, que são um composto de camadas sobrepostas nas quais entramos vaga e difusamente, por mais vivências que nos tragam de volta.

As pessoas marcam-nos intensamente, mas o espaço é aquele condimento de vida que nos fixa a memória e nos lança no futuro, com a obrigação de a ele regressarmos, seja fisicamente, seja pela recordação.

Não há muito tempo li, de uma autora russa exilada na Europa, o romance (ou talvez mais um ensaio) Memória da Memória, sobre a vida de uma família, fixada num lugar ou em lugares vários e não tanto deslocada para um não-aqui.

Sem a ideia fixa de buscar a eternidade, e assumindo a banal passagem de gerações, porque os corpos mortos apenas são silenciados, a memorização torna-nos dependentes de espaços habitados.

Somos fortemente condicionados pela causalidade geográfica, e também pela hereditariedade, como se não existíssemos fora de uma tradição que nos prega a um chão fixo, e do qual jamais nos libertamos, porque somos corpo e mente.

Por isso, o território da memória é constituído pelos espaços que somos em cada momento e pelo parentesco que temos, como o calor seguro de um ninho que se repete primavera após primavera.

Se os nossos familiares que já partiram tudo nos permitem quando os lembramos, deixando-se descrever como os podemos ver subjetivamente, passadas muitas gerações, o nosso espaço é mais coletivo, prendendo-nos a memórias comuns e falando a várias vozes. Este espaço especial é um lugar de escrita bastante aconchegante.

O espaço é a memória daquilo que factualmente existiu, com coordenadas que se tornam visíveis pela luz de uma candeia, que todas as pessoas transportam, às vezes sem o saberem.

Ou seja, o espaço é a nossa assinatura social, já que aquela que fazemos em função da nossa identidade como pessoa nos relativiza, tornando-nos prisioneiros de um nome.

Por isso, dizemos, com toda a satisfação, que somos de um dado lugar, de muitas assinaturas e memórias.

E como é bom dizer que sou de Coura!

 

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