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8 de Março de 2022 | José Augusto Pacheco
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Opinião

No jardim que entra pela janela do meu quarto, que há mais para ver?

As flores mostram-se aos raios do sol que as banham com entusiasmo, os ramos carnudos das palmeiras ainda dormem – estarão a sonhar? – o verde dos canteiros de relva mostra sinais de crescimento desmesurado, e um homem, próximo do passeio, está ali em cuidados muitos. De pé, dobra e desdobra um lençol – e outro tem a seu lado, sendo os dois da mesma cor, um roxo acentuado – em gestos quase infinitos.

Senta-se e continua a ocupar-se da mesma tarefa, levanta-se, passados muitos minutos, torna a repetir o gesto, tantas vezes que me canso de o olhar. Agora está sentado, de costas para mim, preferindo os olhares movimentados que vivificam o porto de Díli. Parece que assim vai ficar mais tempo, mas não, levanta-se para fazer a mesmíssima tarefa, por mais tempo, o tempo que quiser, porque eu tenho todo o tempo do mundo, sem pressa de sair.

O homem está descalço, veste calções compridos, cor de alegria que só ele sabe apreciar, e usa uma t-shirt, pintada de um vermelho carregado. Senta-se e estende o lençol, afinal são três, como se fosse tomar o pequeno almoço. Apenas dobra e desdobra dois lençóis, o outro, no chão, do seu lado direito, pode continuar a dormir.

Teria dormido ali?

Não sei, nestes dias de intensa observação do jardim não o vislumbrei. Será que esteve ali acampado em 1991, aquando do terror que tomou conta da população da cidade no massacre de Santa Cruz?

Tem idade para isso, não sendo jovem, caminha para anos mais tardios, se bem que a aparência possa iludir. Afinal, acordou o dorminhoco lençol, sujeitando-o ao ritual infligido aos outros, e colocando-o, meticulosa e longamente, dobrado sobre os demais, formando uma parede de sonhos, que ali estão e que só ele conhece ou sabe interpretar.

Está de cócoras, suspenso no tempo, de braços espetados no rosto, que não vejo, mas terá olhos profundos e dentro deles circularão, às catadupas, imagens dilacerantes, pertencendo-lhe por inteiro, como lhe pertencem os três lençóis, que acabam de entrar num saco. Senta-se e move umas folhas brancas. Será o caderno das suas estórias de vida?

Levanto o meu olhar e o homem de Díli já lá não está.

Num ápice, foi-se dali, levou os lençóis e não há sinais da sua presença.

Levou também as folhas e nelas escreverá o seu diário de enigmas.

Chegou o pequeno-almoço, hoje é domingo e pedi-o para as 9h.

Não tenho apetite. E como o poderia ter?

 

 

 

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