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ROMARIGÃES. SERAFIM, DESDE A GUERRA EM ANGOLA À MURALHA DA CHINA

7 de Maio de 2024 | José Luis Freitas
ROMARIGÃES. SERAFIM, DESDE A GUERRA EM ANGOLA À MURALHA DA CHINA
Destaque

Há gente de memória entranhada nas rugas do tempo, com memórias a bailar nas esquinas do passado, pronta a desvendar histórias e segredos guardados sob o manto da nostalgia.

Serafim Cerqueira da Cunha, viúvo precoce (1986) e com três filhos, é, aos 86 anos, um daqueles homens com memórias vivas e vastas, entrelaçadas como os fios de um novelo infinito, memórias que mostra, orgulhoso, em dois livros  que ele mesmo escreveu: “Memórias de um para-quedista” e “A viagem da minha vida” cujas histórias não se resignam a caber numa página deste jornal.

Serafim Cunha, 86 anos. uma vida cheia de aventuras

Nascido a 6 de Fevereiro de 1938, no Lugar do Outeiral desta freguesia de Romarigães, Serafim fez da sua vida uma longa viagem numa busca incessante pela aprendizagem e pelo conhecimento.

Aos 8 anos muda-se com a sua mãe Laurinda para o Lugar do Casco, freguesia de Rubiães, dividindo o seu tempo entre a escola primária e o trabalho de moleiro nos chamados “moinhos da Pisca”. Ainda menino, aos 12 anos, parte rumo a Lisboa, para trabalhar numa carvoaria, a sacola, essa, levava-a cheia de sonhos, no coração ia a esperança, nos olhos perdiam-se as lágrimas.

Na Guerra Colonial em 1961

Mas o Serafim tinha sede de saber, vontade de aprender, o coração ansioso por desdobrar-se em novos horizontes de conhecimento. Então inscreve-se no ensino para adultos, completa a instrução primária, tira um curso de dactilografia, inscreve-se e frequenta o curso comercial na escola Francisco Arruda.

A sete de Maio de 1959 é incorporado no exército onde após a recruta frequenta a escola de cabos. Em Agosto desse mesmo ano ingressa na Força Aérea como cabo escriturário, no mês de Outubro seguinte frequenta o curso de paraquedismo, sendo “brevetado” a 27 de Novembro.

A sete de Abril de 1961 parte para Angola, sendo integrado nas forças operacionais do Norte, onde “tira a carta” que o habilita à condução de veículos ligeiros, pesados, motos e tractores profissionais.

Da campanha militar em Angola brotam inúmeras histórias e vivências, como um rio caudaloso que não se enclausura em meras palavras que eu aqui pudesse escrever, registo apenas para aquele brilhozinho no olhar ao mostrar as condecorações com que acabaria distinguido: medalha de comportamento exemplar (1964); medalha de prata das campanhas das Forças Armadas no Norte de Angola (1965). Em1964 regressa a Portugal, vindo a frequentar  e a concluir o curso de sargento paraquedista.

A partir de 1965 muda residência para Odivelas, passando, por recomendação de António Martins, capelão do Exército e amigo pessoal da família, a trabalhar como motorista particular do conhecido e multimilionário banqueiro Ricardo Espírito Santo, a um mesmo tempo que frequentava e concluía um curso de Electrónica.

Desta época, para além da esmerada educação, trato fino e atento, elevada cultura e astúcia negocial dos patrões, Serafim recorda a  proximidade e o convívio que teve com muita gente conhecida e importante, lembrando a título de exemplo as muitas vezes em que foi assistente de caça (o chamado “guarda-jóias”) do seu patrão e, entre outros  convidados (como o Embaixador de França, o Infante João, Conde de Barcelona, e o  seu filho Juan Carlos, ele que viria a ser Rei de Espanha de Novembro de 1975 a Junho de 2014, altura em que abdicou do trono, lembrando com um sorriso nos lábios que “ Juan Carlos era um grande caçador”), lá andou Serafim pelas grandes caçadas da realeza. Explica agora sobre o futuro Rei Juan Carlos: ele matava a perdiz dele e ainda ia matar a perdiz da direita e da esquerda”. Confidencia ainda: por vezes notava-se mesmo algum desagrado dos outros caçadores, mas por diplomacia e respeito nada diziam”.

Terminado este capítulo da sua vida, o nosso interlocutor enveredaria ainda pela actividade, em loja própria, de comercialização, instalação e reparação de electrodomésticos, actividade empresarial esta que, como o próprio nos confessa, seria aquela que lhe viria a trazer maiores e melhores dividendos económicos.

A 18 de Julho de 2010, já com a bonita idade de 72 anos, Serafim encontra motivação num filme e decide-se a fazer a viagem da sua vida, nada mais nada menos que o famoso Transiberiano, a mais longa linha ferroviária do mundo e uma obra de engenharia que desafia os limites da construção humana.

Da grande Muralha da China ao Kremlin em 18 dias, atravessando vários fusos horários, Serafim dá-nos conta do seu espanto pela grandeza da Muralha da China, dos encantos da Cidade Proibida, da vida nómada da Mongólia, da impressionante paisagem do lago Bacal, do Kremlin, da excentricidade da capital da Rússia, enfim, daquela que foi… a viagem da sua vida.

Neste texto, apenas roçamos a superfície das vivências de Serafim Cerqueira da Cunha, da sua campanha militar em Angola, da experiência ao volante da família Espírito Santo, do Transiberiano da… sua vida. As histórias e experiências transbordam para além destas breves linhas, convidando à descoberta de um mundo de memórias ainda por explorar.

Aos 86 anos, a lucidez é fiel companheira do Serafim na jornada solitária da vida. Navega com destreza pelos caminhos da existência, conduzindo a sua própria autonomia como um mestre na arte de viver plenamente.

 

 

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