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Diferenças sem desigualdade

23 de Fevereiro de 2021 | Helena Ramos Fernandes
Diferenças sem desigualdade
Opinião

As diferenças nem sempre são acompanhadas de desigualdade negativa.

Somos inegavelmente todos diferentes. Somos, sem sombra de dúvida, seres únicos. Pessoas repletas de qualidade e defeitos. Com características físicas e psíquicas distintas. Com vontades e apetites diferentes. Com educação e percursos de vida diferentes. Com objectivos e metas distintos. Com maior ou menor poder de compra. Mas serão todas essas diferenças sempre responsáveis por desigualdades negativas? Nem sempre são, caro leitor. As diferenças por muito acentuadas que sejam nem sempre são acompanhadas de desigualdade negativa. Dependendo do contexto e excluindo todas aquelas que estejam relacionadas com direitos sociais e constitucionais, ou que nos inibam o acesso a esses mesmos direitos.

A diferença nem sempre propicia a desigualdade. A diferença pode potenciar a criatividade, a adaptabilidade e em algumas situações o prazer da simplicidade.

Será que o acesso a isto ou aquilo, o que tanto se tem falado nos corredores políticos, na comunicação social ou nos inúmeros estudos sócio-económicos, pode efectivamente atenuar certas desigualdades? Talvez possa, caro leitor. Ou não.

O acesso igualitário à saúde, por exemplo. Será que este não esconde diferenças com desigualdade em Portugal? Diz-se por aí que temos uma política nacional de Saúde excelente. Será que esta, mesmo assim, não propicia certas desigualdades?!

É verdade que, por este mundo fora, exista quem não tenha acesso a qualquer sistema de Saúde. Temos um Serviço Nacional de Saúde (SNS) bom, mas existem diferenças bem notórias na desigualdade ao acesso à Saúde em Portugal. A ADSE (Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado) por exemplo, será que este sistema não esconde desigualdades em relação aos que apenas podem recorrer ao SNS?  Diga-se de passagem, caro leitor, que é o SNS que paga os medicamentos adquiridos em farmácia comunitária a estes beneficiários da ADSE (desde 2015). Isto é, o SNS contribui para pagar medicamentos aos beneficiários da ADSE e aos utentes que só podem recorrer ao SNS, esta dificulta ou impossibilita o acesso a óculos graduados, despesas dentárias, entre outros. Ou esperar por uma cirurgia meses a fio sem poder nunca optar pelo privado, como acontece com os portugueses ‘servidores do Estado’. Eu não sou actualmente beneficiaria da ADSE, caro leitor. Mas em tempo, já fui funcionária pública e beneficiária desse sistema ou ‘seguro’, por isso escrevo com conhecimento de causa. Só para relembrar que o SNS não participa os medicamentos adquiridos em farmácias comunitárias quando é accionado um qualquer outro seguro de saúde ‘privado’. Vislumbre-se neste paragrafo um ‘chisquinho’ de anti-constitucionalidade. Não lhe parece, caro leitor?

O acesso a um determinado direito, não pode ser diferenciador. Se é um direito constitucional, deve ser igual para todos. Ou acessível a todos de forma igualitária. Aceder a um direito não nos pode ser dificultado em virtude de qualquer diferença que apresentemos. Como por exemplo, ser trabalhador do sector público ou do sector privado. Aqui pode estar uma diferença com desigualdade. Somos todos trabalhadores contribuintes, e todos devemos ter acesso às mesmas escolhas.

O acesso a tudo o que possa aumentar o poder de compra das famílias, será potenciador de maior estabilidade social quando este funcionar sobretudo como um estímulo a multiplicação, na óptica de ‘dinheiro faz dinheiro’. Caso contrário este aumento poderá não aportar nada e criar a ilusão de uma estabilidade aparente que leva por vezes algumas famílias a darem passos maiores do que a perna.

Se as diferenças não diminuírem a qualidade de vida de uma família, em qualquer dos seus parâmetros, mensuráveis ou não, estas não provocarão qualquer desigualdade negativa. Não devemos dar um passo maior do que aquele que a nossa perna nos permite. Esta é uma regra que serve para todas as decisões a serem tomadas. E se queremos mais, temos que fazer por mais. Nada cai do céu de mão beijada. Nem deve cair!

Devemos viver e aprender a viver em função do nosso rendimento familiar, e com uma boa gestão teremos acesso a tudo, em maiores ou menores quantidades ou frequência, mas desejavelmente ao suficiente. Podemos e devemos ansiar por mais, e lutar por isso, caros leitores. Sonhar está acessível a todos e como disse Walt Disney, “Se você pode sonhá-lo, você pode fazê-lo.”

Mas, caro leitor, nem sempre a abundância provoca felicidade. Concorda comigo?

E isto é facilmente verificável na infância, mais precisamente nas crianças. São inúmeros os exemplos que confirmariam este facto. Passando ao lado de todos os possíveis exemplos estudados e confirmados, relato um acontecimento pessoal e familiar que me parece apropriado partilhar. Pouco antes de nascer o meu filho mais novo, a minha filha, com cerca de ano e meio, primeira neta de ambas as famílias, materna e paterna, foi inevitavelmente bastante mimada. Esta situação de ter sido primeira e única neta nessa época colocou-a numa posição privilegiada para receber brinquedos aos montes. Muitos brinquedos, alguns bem simples, outros mais sofisticados, uns acessíveis a todas as carteiras, e outros nem por isso. Mas de todo o espólio que ela já tinha nessa tenra idade, ela designou como o seu brinquedo predilecto uma bacia velha presa a uma corda, na qual se sentava e era levada a passear pela meia dúzia de metros que a varanda tinha. Ela tinha outros brinquedos com essa mesma função, no entanto a velha bacia era a mais procurada. Esta proporcionava-lhe imenso prazer que era notório pelas gargalhadas que dava enquanto era puxada pela varanda fora. Um brinquedo improvisado, um brinquedo acessível a todos as carteiras. As crianças buscam o prazer na diversidade, mas sobretudo na simplicidade. Neste caso, nas brincadeiras infantis, as diferenças sociais e financeiras não se fazem de todo sentir. Para elas tudo são diferenças sem desigualdade mesmo nas mais simples soluções. Elas são felizes assim.

Sejamos assim, caro leitor, todos diferentes, mas sem desigualdade. Sejamos felizes também. A felicidade, caro leitor, não depende do que nos falta. Mas do bom uso do que temos!

Deixem-nos ser assim, caros políticos, todos diferentes, mas sem desigualdade no acesso aos direitos constitucionais.

 

 

 

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