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GERAÇÃO DE OURO DA RESTAURAÇÃO EM LISBOA.

27 de Setembro de 2022 | Gorete Rodrigues
GERAÇÃO DE OURO DA RESTAURAÇÃO EM LISBOA.
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JOÃO CUNHA, 91 ANOS, O HOMEM SEM TEMPO PARA SER CRIANÇA

26 de Julho de 1946, Segunda Guerra Mundial mal terminada, Guerra Fria a caminho.

Enquanto lá por fora se davam os primeiros passos para a criação de uma instituição de defesa dos direitos da criança (a UNICEF haveria de nascer em Nova York a 11 de Dezembro desse mesmo ano), por cá, os nossos meninos continuavam sem tempo para ser crianças.

João Cunha, à altura um menino de Romarigães, de tão-só 14 anos, hoje decano dos restauradores minhotos na Grande Lisboa, passados que são 76 anos lembra esse dia como se fosse hoje: “era uma sexta-feira de Verão, parece que ainda estou a ver a minha mãe a chorar abraçada a mim enquanto me pedia, quase numa súplica, que voltasse rápido”. Emocionado, continua: “confesso que a dado momento já não sabia bem de quem eram as lágrimas que me corriam pelo rosto”.

Hoje com 91 anos de idade, o João da Cachouceira, como é conhecido pelas nossas gentes, em alusão ao Lugar de nascimento, era à época uma criança igual a tantas outras; um menino à pressa feito homem, tinha a cabeça cheia de sonhos e os bolsos cheios de nada, saído de uma escola necessariamente curta e que “naquele tempo até nem era para todos”. O João ia ouvindo relatos de um certo mundo para lá da horta e do rebanho, um mundo desconhecido e distante chamado Lisboa.

E seria deste mesmo mundo que surgiria um enorme desafio: o convite para trabalhar na capital. O portador deste convite foi o inevitável e saudoso Adriano Sarrilha, amigo e parceiro comercial de uma longa geração de courenses em Lisboa.

Sem grande hesitação, João Cunha decide aceitar o desafio e nessa tal sexta-feira, 26 de Julho de 1946, ainda com as lágrimas mal enxutas, entra na “camionete que me leva de Romarigães até Ponte de Lima” e continua, “depois mudei de camionete e fui até Viana”, acrescentando, “depois, segui de comboio até Lisboa”.

No Rossio tinha à sua espera o Adriano Sarrilha que “me levaria até á carvoaria do Aníbal no Arco do Carvalhão”, diz o João.  “Por entre carvão, pipos de vinho e muito suor, aqui trabalhei durante oito anos, dediquei-me ao serviço com empenho e depressa ganhei a simpatia de patrões e clientes”, continuando o seu relato: “até que um dia, o Sr. Brandão, também ele um romariguense, pedindo-me silêncio porque era amigo do meu patrão, me prometeu um salário melhor para ir trabalhar com ele”.

Fruto deste convite, João Cunha chega ao local que marcaria toda a sua vida profissional: o Largo da Graça.

Na casa do Sr. Brandão, à altura uma carvoaria, permaneceria inicialmente por um período de 6 meses, tendo daqui saído “a convite do Basílio das Pedrinhas para ser encarregado da Mourisca, também na Graça”, acrescentando: “estive nesta função uns dois a três anos, passados os quais fiquei sócio e depois adquiri mesmo a parte pertencente ao Basílio”, concluiu.

Uns anos passados, em 1966, João Cunha forma sociedade com António Martins e António Ferreira da Costa, também romariguenses, e adquirem ao Sr. Brandão a “Parreirinha da Graça”, nessa altura já um modernizado restaurante e casa de pasto, “por 400 contos”. De salientar que à época este era um valor bastante considerável. Passado algum tempo, Ferreira da Costa decide enveredar por outra actividade e vende “por 200 contos” a sua terça parte aos dois restantes proprietários.

No início dos anos 90, abeirados os 60 anos de idade, após a venda á Moviflor, conhecido gigante do mobiliário, do espaço físico da “Parreirinha da Graça”, João Cunha retira-se definitivamente da indústria hoteleira dedicando o seu tempo a um merecido descanso e à gestão de algum investimento imobiliário que foi fazendo ao longo do tempo.

Pai atento e preocupado, perante alguma indefinição profissional no pós estudos do seu filho José Carlos, o maior de dois, decide investir num negócio diferente e compra a “Papelaria Grilos”, ainda no Largo da Graça, negócio que mantém até ao dia de hoje; “naquela altura era um bom negócio, para além do meu filho que era o gerente, chegámos a ter três funcionários no atendimento, vendia-se muitos jornais, revistas e artigos de papelaria mesmo, desde cadernos a lápis e canetas”. Acrescenta ainda: “hoje o que vai viabilizando o negócio são os jogos da Santa Casa e o comércio de souvenirs turísticos”, conclui.

“Vidas Solidárias” é um filme brasileiro de 1945, mas podia muito bem ser título da crónica da vida de João Cunha em Lisboa. Para além dos “muitos empregados da terra que tive”, estendeu conselho e ajuda a muitos outros conterrâneos e instituições, pelo meio foi co-fundador da instituição de solidariedade e beneficência “Amigos de Romarigães”, que chegou a ter mais de 80 benfeitores, prestando auxílio a pessoas carenciadas e situações de emergência solidária na freguesia de Romarigães, foram aliás inúmeros os relatos de apoios prestados que nos foram feitos pelo nosso interlocutor e que, por razões óbvias, omitimos neste texto.

Confesso que foi para mim um enorme prazer conversar com João Cunha, senhor de uma cativante atenção e simpatia e dono de uma memória, conhecimento e lucidez impressionantes para alguém da sua idade.

“Chega-se muito longe, sem nunca esquecer as origens” é uma frase do comendador Manuel Rui Azinhais Nabeiro, um dos portugueses que mais admiro, por coincidência também ele nascido em 1931, pelos vistos e revistos… terá mesmo sido uma boa safra a desse ano.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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