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RECORDANDO ESPECTÁCULO NA CASA DO DADOR NA DÉCADA DE 90

12 de Maio de 2020 | Manuel Tinoco
RECORDANDO ESPECTÁCULO NA CASA DO DADOR NA DÉCADA DE 90
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FERNANDO MAURÍCIO, O REI DO FADO EM PAREDES DE COURA

Em tempo de pandemia, a vida ficou como que suspensa. Pára tudo! À espera de novas ideias e de uma adaptação aos novos tempos, a cultura ficou em banho-maria.  Neste ínterim, o NC achou acertado trazer às suas páginas algumas iniciativas do século passado, em jeito de homenagem aos envolvidos, mas também exercitando a memória dos leitores e dando a conhecer textos que os mais novos nunca viram.

É neste contexto que surge o trabalho que mais abaixo se transcreve e que retrata partes de uma reportagem que eu próprio fiz para um antigo jornal de Paredes de Coura, cerca de 1995, com o lendário Fernando Maurício, o fadista dos fadistas, o rei do fado castiço, o homem que por nada abandonaria a sua Mouraria e a sua Graça, o artista que não quis trocar a pacatez do seu bairro e das casas de fado pelo fastígio da fama, o benemérito que quantas vezes cantou de graça por amor a obras de beneficência tal qual aconteceu em Paredes de Coura na Casa do Dador, também na década de 90. Já agora, falar do saudoso Fernando Maurício é ainda falar de António Ferreira, o rubianense também já desaparecido que teve o rei do fado como figura de proa da sua casa de fados durante muitos anos. Cá vai então, “Fernando Maurício, o Rei do Fado”:

“Qual boémio inveterado, ar gingão de alfacinha de gema, fui ao fado. Entre o Martim Moniz e o Campo de Santana, subindo a Rua de São Lázaro, encontrei um dos santuários lisboetas que chamam até si os amantes das velhas fadistagens, ‘Os Ferreiras’, dos irmãos courenses António e Joaquim Ferreira. Por aqui se consola palato e espírito escutando o gemido da guitarra e as vozes sofridas que nos choram os desencantos da alma e os desamores da vida. E eis Fernando Maurício, ele próprio o fado em pessoa, nado e criado na casa onde terá vivido a Severa, outra lenda da Mouraria. Meti conversa, e logo no adro das palavras surgiu a ‘Igreja de Santo Estêvão’:

‘Fui eu quem popularizou esse fado, quem o gravou a primeira vez em disco, mas o seu criador, há muitos anos, foi o Júlio Peres’. O seu a seu dono, que Maurício é mesmo assim, respeita os velhos mestres e a história do fado. Todavia, não fica agarrado ao passado e gravou recentemente, em produção de Jorge Fernando, ‘Saudade vai-te embora’ e ‘Mar cruel’. “Gosto muito do Jorge, tem feito muitas coisas para mim, ‘A Antologia do Fado mais triste’, por exemplo, é um magnífico trabalho em que ele reúne, com grande rigor, nomes como Manuel de Almeida, Beatriz da Conceição, Cidália Moreira e eu próprio, entre outros’.  Aquele que no início da carreira era conhecido como o Miúdo da Mouraria recuou alguns anos e desfiou memórias. ‘Comecei num concurso organizado pelo jornal Ecos de Portugal, em 1947, eu tinha 13 anos, mas já andava com grandes nomes, como Carlos Ramos, Filipe Pinto, Alberto Rosas, Argentina Santos e até o actor Humberto Madeira, que muito bem cantava. As coisas correram de tal modo bem que logo de seguida passei a integrar o elenco de fadistas do Café Lontra. Depois não parei mais, foi o Luso, o Faia, a Adega Machado, já nem me lembro’. Com uma legião de admiradores e de fadistas a copiarem-lhe o estilo, Maurício prefere, no entanto, o seu recato. ‘Desagrada-me o aparecimento nos grandes palcos. E cada vez mais. Também não gosto da volta que o fado tem levado de há uns quinze ou vinte anos a esta parte, com certas pessoas que se dizem fadistas, levando o fado para uma linha aristocrática que não faz parte da sua essência. Fazem sucesso junto do público mas abastardam o fado, descaracterizam-lhe a alma; a alma do fado é o povo, o povo é que é fado, estás a perceber? Olha, a Amália levou o fado mais longe, trouxe-lhe os grandes poetas mas nunca renegou a origem, a sua origem e a origem do fado. O Marceneiro é outro bom exemplo, embora noutro estilo, claro, sempre agarrado ao tradicional, mas ninguém estilava como ele. Dos novos, acredito muito no Camané, tem o fado todo dentro dele’.

A propósito do espectáculo na inauguração da Casa do Dador em Paredes de Coura, Fernando Maurício afirma conhecer bem o povo minhoto. ‘Tenho muita admiração pelo povo minhoto. É gente com grande espírito de luta para singrar na vida. Nos meus tempos de menino e moço havia muitos minhotos na Mouraria, gente de trabalho. Lembro-me que faziam aos domingos, no Martim Moniz, as estúrdias, aquele folclore era muito bonito, muito genuíno, era o povo, eu gosto de me sentir com o povo.’”

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