Shopping cart

Subtotal $0.00

View cartCheckout

Publicação quinzenal dedicada à informação local de Paredes de Coura. Aqui encontra notícias, reportagens, entrevistas e agenda cultural do concelho. Um espaço de proximidade que dá voz à comunidade courense.

Destaques

A memória que se reinventa

23/09/20254 Minutos de Leitura
195

Com certeza que muitos de vocês, caros leitores, se irão rever nesta realidade que está presente em muitas famílias. A indesejada demência que tem vindo a atingir os nossos queridos ascendentes. A perda da memória dos momentos ou acontecimentos de forma repetida, requerendo dos familiares uma boa dose de paciência e de resiliência quando se deparam com essa realidade. Mais marcante quando não se reconhecem esses sintomas que vêm com o propósito de ficar.

Quando diagnosticado o estado em questão, é necessário, caro leitor, aceitar e aprender a lidar com essa situação. A demência é muitas vezes mal compreendida, podendo levar a mal-entendidos.

A vida passa por diferentes fases com tempos diferentes. Há dias em que o tempo parece ser um rio que corre demasiado depressa. Para quem vive com demência, esse rio arrasta, muitas vezes, as lembranças mais recentes, deixando o presente cheio de espaços em branco. Mas, curiosamente, é nesse vazio que as famílias descobrem a força do afecto e a importância de reinventar a felicidade. Quem vive com um ente querido demente, se se adaptar a essa realidade sem perder o equilíbrio, poderá viver feliz e transmitir essa felicidade a quem vive com o esquecimento. Quem cuida com amor, caro leitor, acaba por entender, que nessas situações a calma e o carinho são mais eficazes do que um simples medicamento, que apenas serve para disfarçar essa dor invisível. Com muito amor é possível conseguir fazer o impensável. Fazer com que a água volte a correr repetidamente pelos mesmos troços do rio, diminuindo a probabilidade de essa chegar à foz do vazio absoluto.

Quando uma mãe, um pai ou um avô começa a esquecer acontecimentos de ontem ou até muito mais recentes, a primeira reacção é o incómodo de repetir, vezes sem conta, a mesma resposta à mesma pergunta efectuada repetidamente. Contudo, a demência ensina que a vida não se mede apenas em recordações, antigas ou recentes, mas sobretudo nos momentos que ainda podem ser criados, mesmo que durem apenas alguns minutos.

O envolvimento da família torna-se essencial. Não basta estar presente fisicamente. É preciso aprender a comunicar com gestos, com o tom da voz, com a paciência infinita de quem sabe que a conversa pode repetir-se muitas vezes no mesmo dia. Um sorriso, uma canção antiga, uma fotografia, um cálice de porto ou até o cheiro de um bolo no forno podem despertar emoções que a memória já não consegue organizar, mas que o coração ainda reconhece.

Ser feliz e fazer feliz, numa situação dessas, significa valorizar o instante. É rir-se de uma história contada pela quinta vez, como se fosse a primeira. É aceitar que a lógica se dissolve, mas que a ternura permanece. E, caro leitor, é sobretudo transformar o esquecimento num espaço para a imaginação, e se não há lembrança do ontem, pode sempre haver surpresa no agora. A felicidade, nestes casos, centra-se sobretudo na capacidade, que se vai adquirindo, de reinventar a memória.

A vida, caro leitor, tem vários propósitos, e nesses devemos saber gerir o nosso tempo. Devemos incluir tempo para dedicar aos nossos ascendentes e suas fragilidades, adaptando a nossa vida por eles como eles já fizeram outrora por nós.

O desafio é grande, mas a recompensa é ainda maior. Sobretudo quando reconhecemos que, apesar de tudo, a pessoa que amamos continua lá. Talvez diferente, talvez mais silenciosa, mas sempre merecedora de amor, respeito e dignidade. E é esse, caro leitor, o significado de cuidar. É segurar a mão desse alguém quando o mundo já não é claro, e lembrar-lhe, com gestos simples, que nunca está sozinho e que o amor à sua volta é uma constante.

Helena Ramos

Notícias relacionadas